Além de coletar e utilizar comercialmente os dados dos usuários, a vigilância das plataformas digitais financeiras afeta o comportamento do consumidor e sua capacidade de decisão. Segundo artigo de pesquisadores da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV EAESP) publicado na revista “Journal of the Association for Information System” neste sábado (2), clientes de serviços personalizados de microcrédito ficam expostos a um ciclo de constante renovação dos empréstimos enquanto única oportunidade de inclusão social e financeira.
Os pesquisadores realizaram estudo de caso de uma fintech que atende microempreendedores no Brasil. Além de realizar entrevistas com o CEO e funcionários entre março de 2018 e janeiro de 2019, o trabalho partiu também da observação de uma região de atuação da empresa e baseou-se, principalmente, em dados secundários sobre a organização, como materiais de imprensa e relatórios de prestação de contas produzidos entre 2013 e 2019.
A inclusão financeira digital se apresenta como alternativa para facilitar o acesso ao crédito de pessoas de baixa renda e sem emprego formal, perfil considerado de risco por bancos tradicionais, explica o artigo. A produção científica tem destacado os aspectos positivos desses serviços, que oneram menos o cliente devido aos baixos custos de operação das fintechs. Mas, no contexto no capitalismo de vigilância, a inclusão social torna-se desafio individual, e não coletivo ou social, e depende de plataformas digitais sujeitas aos interesses do mercado financeiro, alerta a pesquisa.
Além de prever e controlar as ações dos usuários pelos dados de navegação e pagamento no celular, a chamada “inclusão financeira vigiada” conta com agentes de microcrédito que estabelecem relações de confiança com a comunidade. Esses funcionários criam conexão pessoal com o microempreendedor para assegurar a renovação constante do microcrédito, que é de curto prazo. Os valores são utilizados principalmente em capital de giro e crédito rotativo, apontam Érica Siqueira, Eduardo Diniz e Marlei Pozzebon, autores do artigo.
Os pesquisadores explicam que a baixa inadimplência, com taxa de repagamento entre 92 e 95%, torna o negócio lucrativo e de baixo risco para as fintechs. “Por um lado, esse crédito permite a expansão e valorização acelerada da plataforma financeira, mas por outro, pode colocar em risco o crescimento e expansão dos micros e pequenos negócios. Nesse sentido, nosso texto traz um alerta, para que as empresas privadas não operem apenas para transformar a pobreza e a falta de proteção social em um negócio rentável para elas”.
Os autores observam que modelos de inclusão financeira e microcrédito precisam ser repensados por profissionais e governos para que não reproduzam práticas de vigilância. “É importante notar o quanto as plataformas digitais em geral têm aperfeiçoado seus algoritmos para aumentar sua rentabilidade por meio de práticas pouco éticas”, ressaltam. Para pesquisas futuras, eles destacam que é relevante ampliar o escopo de estudo de vigilância para incluir arranjos de tecnologias e agentes humanos. “Os agentes humanos não são meros coletores de informação, mas são elementos centrais em estratégias de vigilância”, completa Siqueira.