O funk atual compartilha com o rap a mesma cultura do jogo entre o DJ e o mestre de cerimônias. Thiagson lembra que o hip hop norte-americano da década de 1980 tinha, além do rap, vertentes musicais mais dançantes. Uma delas era o electrofunk de Los Angeles, de onde saiu a batida dos primeiros funks cariocas: era o Volt Mix, produzido em 1988 pelo DJ Battery Brain. “É uma das primeiras batidas usadas aqui logo que o funk começou a ser produzido no Brasil do final dos anos 80. O primeiro disco de funk produzido em português, produzido no Brasil, é o LP DJ Marlboro apresenta Funk Brasil. Mas havia já, por exemplo, a Furacão 2000, que lançava vários CDs com coletâneas dessas músicas americanas há bastante tempo”, diz o pesquisador.
O gênero é uma das várias expressões musicais dançantes da diáspora africana nas Américas. Figura ao lado do Miami bass da costa leste dos Estados Unidos, do reggaeton latino-americano e do brega-funk do Nordeste do Brasil. Também tem muito diálogo com o kuduro e o afrobeat. “Tem muitos musicólogos que defendem que essa clave rítmica do funk, esse tum tchá tchá tchá tchá tchá tchá, esses mesmos ataques, esse mesmo ritmo, vem dessa costa oeste africana”, afirma Thiagson.
Dentro do universo do funk, há estilos, estéticas e formas de produzir diversas. Há também uma certa disputa entre os DJs para emplacar uma nova onda e se diferenciar dos demais. Tem o funk consciente, com letras mais voltadas às questões sociais enfrentadas pelos moradores das periferias brasileiras. Tem o trap-funk, que é mais rasteiro, com uma batida mais lenta, e o funk 150 bpm, mais acelerado. Nos bailes de favela de São Paulo, o mandelão é o estilo que comanda a festa. Dentro do mandelão, existem subdivisões, como o automotivo e o bruxaria. Este último adota uma estética que faz referência aos filmes de terror e letras que falam despudoradamente de sexo.
“É uma música muito voltada para os bailes de favela. Baile do Helipa, por exemplo. A produção sonora tem sons extremamente graves e sons extremamente agudos, distorcidos também. O ritmo do bruxaria é aquele bate-estaca da música eletrônica, bum bum bum bum bum, não é aquele tum tchá tchá tchá tum chá que a gente está acostumado”, diz Thiagson, mencionando o famoso baile realizado em Heliópolis, na zona sul de São Paulo.
“Os funks de baile de favela também têm uma outra característica que é a baixa qualidade de amostragem do som. Às vezes, o MC canta de casa, no próprio WhatsApp, e manda para o DJ. Então não vai sair aquele áudio maravilhoso… E tudo bem. A arte ensina que você não precisa ter grandes meios e equipamentos caros para fazer a música cumprir a sua função de comoção social”, completa.
Ele destaca que essa produção em rede é o que possibilita o intercâmbio de várias quebradas. Existem também diferenças regionais. Enquanto o funk de São Paulo tem uma produção mais crua, o funk do Rio de Janeiro é mais ritmado. Já o de Minas Gerais costuma ser mais bem produzido, seguindo as regras do mainstream musical.
”Tudo aquilo que eu perdi estudando música clássica”
O trabalho de valorização do funk como expressão cultural negra periférica e a crítica ao elitismo da academia deram a Thiagson muitos seguidores, mas também muitos adversários e detratores. Thiagson não é exatamente uma unanimidade entre os músicos e, como pesquisador, tem passado mais tempo fora dos muros da Universidade do que dentro. Nascido no sertão da Bahia, ele cresceu entre Juazeiro e Santo André, no ABC Paulista, e se reivindica como um sujeito periférico.
“Tive muita vergonha de ser pobre, da minha origem, quando eu entrei nesse ambiente de ensino de música clássica. Não que as pessoas sejam ricas, mas existe uma cultura elitista que faz com que a gente se envergonhe da nossa condição”, lembra. “Eu via os professores falando assim, ‘mas com cinco anos eu tocava piano e ouvia Brahms’, e eu pensando que com cinco anos eu estava rebolando na boquinha da garrafa, estava ouvindo toda a convulsão da cultura periférica, e me envergonhava disso”, completa.
Orientado pelo professor Walter Garcia, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, Thiagson desenvolveu sua tese de doutorado na área de musicologia. Ele diz que muita gente poderia classificar seu trabalho como etnográfico, pois tem ido a campo para conhecer a produção do funk em São Paulo e em outros estados.
“Acho que eu não estou muito na academia, não estou muito na universidade. Estou mais no funk, escrevendo e convivendo e conhecendo outros produtores e outros estados. Fui para Minas Gerais, fui para o Rio de Janeiro conhecer como é que se produz funk lá. Estou em contato com muita gente que produz e pensa o funk”, explica o pesquisador.
“Muita coisa dessa minha pesquisa de campo para extração de dados e pensar nessa teoria é na verdade a minha própria vivência, né? Formalizando todas essas vivências, as pessoas que eu conheci, os DJs, produtores de música, as formas de pensamento musical que eu conheci. Tem um sentido de resgatar tudo aquilo que eu perdi quando eu estava estudando música clássica, tinha vergonha de ser pobre, tinha vergonha das minhas vivências”, dispara Thiagson.