O crescimento vertiginoso do número de pessoas em situação de rua, principalmente depois da pandemia da COVID-19, incluindo famílias inteiras com animais de estimação e objetos pessoais vivendo em barracas improvisadas em praças e calçadas. Longe de ser um problema exclusivo de cidades grandes de países periféricos, o enorme avanço no número de indivíduos sem domicílios se tornou um fenômeno global.
No Brasil, esse crescimento foi captado por estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Um dos levantamentos aponta que, entre 2012 e 2022, houve um aumento de 90,4 mil para 281,4 mil na quantidade de pessoas em situação de rua no Brasil, o que representa um crescimento de 211%. Pesquisadores que trabalham com a temática são unânimes ao afirmar que, apesar de o país contar desde 2009 com a Política Nacional para a População em Situação de Rua (Decreto nº 7053), é preciso tirar as ações do papel.
O sociólogo do Ipea Marco Antônio Carvalho Natalino, autor do estudo mencionado, explica que a criação dessa política impulsionou uma série de ações por parte do governo federal. Já em 2009 a população de rua foi incluída no Cadastro Único (CadÚnico), base de dados com informações sobre pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza. No ano seguinte, esse grupo passou a ter direito de acessar o Sistema Único de Saúde (SUS), mesmo sem comprovante de residência. Em 2012, começaram a funcionar os Consultórios na Rua, que reúnem equipes com médicos, enfermeiros e psicólogos, entre outros profissionais da saúde, que prestam atendimento de forma itinerante. No entanto, como a adesão à política nacional era voluntária, até 2020 apenas 15 prefeituras, como as de São Paulo e do Rio de Janeiro, e o Distrito Federal, estavam formalmente comprometidos em implementar suas diretrizes. “As medidas necessárias para atender a população de rua estão previstas nessa política, mas o Brasil está falhando na sua implementação”, reforça Natalino. Ele destaca, ainda, que outra pesquisa do instituto detectou um aumento de mais de 1000% nas pessoas em situação de rua registradas no CadÚnico, saltando de 21,9 mil para 227 mil, entre 2013 e 2023.
Governo lança Censo da Pop Rua
O governo federal lançou no final de 2023 o “Plano Ruas Visíveis – Pelo direito ao futuro da população em situação de rua”, uma estratégia de ação à implementação de medidas de assistência social, saúde, cidadania, educação, habitação, trabalho e renda já previstas em 2009. Com investimentos de R$ 1 bilhão em quatro anos, o programa articula iniciativas de 11 ministérios, instituições de pesquisa, como a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o Ipea e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), além de dialogar com movimentos sociais.
Caracterizadas como um grupo “que vive na pobreza extrema, rompeu vínculos familiares e não tem moradia convencional e regular, utilizando o espaço público ou unidades de acolhimento para viver de forma temporária ou permanente”, pessoas em situação de rua estavam presentes em 2,3 mil municípios em 2023, o que representa 42% das cidades brasileiras, conforme o Observatório de Direitos Humanos do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). Em 2015, esse número era de 1,2 mil cidades, ou 22% do total, segundo dados do CadÚnico.
No final de 2023, o Ipea mapeou o perfil desse grupo com base em dados do CadÚnico. A pesquisa indicou que os moradores de rua eram majoritariamente homens (88%), negros (68%, incluindo pessoas pardas, 50%, e pretas, 18%) e adultos (57% do total tinham entre 30 e 49 anos). Já os principais motivos, não excludentes, apontados para as pessoas viverem nas ruas foram dificuldades econômicas (54%), fragilização ou ruptura de vínculos familiares (47,3%) e questões de saúde (32,5%), especialmente problemas relacionados com o uso abusivo de álcool e drogas.
Conforme o levantamento, 33,7% da população em situação de rua está nessa condição por até seis meses, 14,2% entre seis meses e um ano, 13% entre um e dois anos, 16,6% entre dois e cinco anos, 10,8% entre cinco e 10 anos e 11,7% há mais de 10 anos. “O motivo de a pessoa estar na rua influencia a sua permanência nessa condição”, informa Natalino. Isso significa, segundo a análise, que quem está sem moradia por causa de problemas familiares apresenta um tempo de permanência maior nas ruas, o que também acontece com os motivos relacionados à saúde, em especial devido ao uso de álcool e outras drogas. De acordo com o pesquisador, razões econômicas, como o desemprego, tendem a causar episódios mais curtos de vida nas ruas.
Tanto os problemas econômicos, como os conflitos familiares e problemas relacionados ao álcool e às drogas foram fatores agravados durante a pandemia, conforme análise do pesquisador. “Entre 2019 e 2022, a população em situação de rua aumentou 38% como reflexo desse quadro”, informa Natalino. Para Bichir, do CEM, a pandemia tornou o problema da população de rua mais visível, funcionando como um evento catalizador da agenda de políticas públicas. “Temos a hipótese de que a Covid-19 colaborou para ampliar a presença de famílias e crianças nas ruas. Precisamos desenvolver estudos aprofundados para compreender se isso de fato aconteceu e como a situação se acomodou hoje”, ressalta.
Em 2022, o Censo Demográfico do IBGE abarcou parte da população em situação de rua, ao enumerar a quantidade de pessoas vivendo de forma permanente em domicílios improvisados, ou seja, em barracas, galpões abandonados, albergues, estruturas habitacionais inacabadas, cavernas (além das propriamente ditas, o termo refere-se também a moradias feitas nos vãos de paredes em viadutos, por exemplo) e automóveis. No entanto, o país ainda não realizou um censo abrangente para conhecer a totalidade das pessoas em situação de rua que vivem em território nacional – outra determinação feita pelo STF no ano passado. Com isso, o IBGE trabalha para criar uma metodologia de realização da contagem nacional desse grupo.
O geógrafo Gustavo Junger, da Coordenação Técnica do Censo Demográfico do IBGE, explica que há mais de duas décadas essa população faz parte das preocupações do instituto. Porém o censo da população em situação de rua traz dificuldades metodológicas. Um exemplo: quando a pessoa não quer ou não está em condições de conceder a entrevista. Nessas situações, o recenseador precisa preencher o questionário observando a pessoa em questão. “Fazer esse tipo de trabalho representa um enorme desafio para o IBGE, pois toda a metodologia de nossos levantamentos se baseia no princípio da autodeclaração”, justifica. Os roteiros de coleta de dados não podem ser baseados em divisões de território, à maneira dos censos, na medida em que as pessoas podem se deslocar e sair da área prevista para determinado recenseador.
Além disso, parte da população em situação de rua abarca indivíduos que dormem no espaço público somente alguns dias da semana. A Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), divulgada em 2018 pelo IBGE, mostrou, por exemplo, que o segundo gasto principal das famílias naquele ano foi com transporte. “Como hipótese, podemos pensar que muita gente opta por dormir nas ruas perto do trabalho alguns dias para não comprometer o orçamento mensal”, diz Junger. O geógrafo explica que essas pessoas não podem ser contabilizadas pelo censo da população em situação de rua, pois já são numeradas em seus domicílios pelo Censo Demográfico. Já em uma experiência-piloto realizada pelo IBGE em 2013 para contar a população de rua na cidade do Rio de Janeiro, outro problema identificado envolveu o tamanho e o tipo do questionário. A iniciativa teve problemas de concepção metodológica, como perguntas extensas que não foram compreendidas pela população recenseada.
IBGE pretende criar metodologia para fazer um censo nacional da PopRua
“Agora, estamos no momento de conhecer e analisar diferentes experiências de contagem da população de rua, a fim de criar uma metodologia própria, adequada à realidade do Brasil”, conta Junger. Nesse caminho, estão sendo estudados os censos realizados na Colômbia, que anualmente faz a contagem de sua população de rua em frações específicas do território, e levantamentos do Chile e México, que inseriram essas pessoas em seus censos demográficos nacionais. Metodologias criadas por prefeituras como as de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte também estão entrando no escopo de análise do IBGE.
Apesar de o país não contar com um censo nacional, cerca de 2 mil cidades brasileiras fazem censos de sua população em situação de rua, conforme Natalino, do Ipea.
Experiências bem-sucedidas
Em termos de soluções, Pereira aponta como experiência bem-sucedida as políticas criadas pela cidade do Porto, em Portugal. O município desenvolveu estratégias de acolhimento diferenciadas conforme o intervalo de permanência da pessoa na rua. Casos são acompanhados individualmente por um gestor, com quem são estabelecidos vínculos de confiança e que conhece de perto as principais necessidades de cada pessoa atendida. “Quanto menos tempo na rua, maior a probabilidade de a pessoa conseguir sair dela. Depois de muitos anos nessa condição, as dificuldades para encontrar emprego e moradia aumentam e surgem novos complicadores, entre eles o rompimento definitivo de laços afetivos e problemas de saúde mental”, conclui Arbia, da UFJF.
Fonte: Revista Fapesp