Antonio Candido (1918-2017), Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, foi uma daquelas inteligências raras cuja articulação argumentativa e clareza de exposição transformaram praticamente tudo que produziu em matéria de interesse. Mesmo quando seguiu por paisagens outras além daquela que o consagrou, a crítica literária. Foi assim com seu estudo seminal Os Parceiros do Rio Bonito (1964) – clássico da sociologia rural, que reproduz sua tese de doutorado, defendida em 1954, na USP, na área de Ciências Sociais -, como também com suas investidas pontuais no universo teatral.
São justamente estas últimas contribuições que estão reunidas em Sobre o Teatro, livro organizado pelo professor da FFLCH João Roberto Faria. O volume traz tudo o que Candido escreveu a respeito de espetáculos, textos dramáticos, atores, autores, agentes e instituições teatrais, embalado pela elegância verbal característica do autor.
Em 17 textos apresentados cronologicamente, que transitam entre carta, colunas de jornal, programas de espetáculos, prefácios e ensaios, Candido nos permite divisar certos episódios da história do teatro brasileiro de meados do século 20, como acontece no escrito que abre o volume, uma carta dirigida ao escritor modernista Mário de Andrade, com data de 16 de janeiro de 1943. Nela, o então jovem crítico faz comentários a Café, libreto de ópera escrito pelo autor de Macunaíma e publicado somente após sua morte. Então com 25 anos, Candido não se intimida e reúne aos apontamentos sobre o trabalho uma apreciação crítica da trajetória artística de Mário:
“Neste ponto, deixe-me dizer, Mário de Andrade, como eu acho grande a sua evolução em face dos problemas sociais. V. fez o caminho inverso do habitual. Na primeira mocidade, a gente arde por eles em entusiasmos generosos… e platônicos – para ir se aquietando, com a idade, num individualismo comodista, na grata contemplação do próprio umbigo. V. partiu do individualismo estético para, na idade em que normalmente se fica embalado no adágio pianíssimo da comodidade, entrar generosa e profundamente na dor que provocam aqueles problemas (…).”
Na carta a Mário, Candido escusa-se avisando que não se dá bem com o teatro. O que a coleção de escritos – e a apresentação de João Roberto Faria – faz, entretanto, é provar o contrário. O livro mostra ao leitor um autor que esteve a par de momentos decisivos da história teatral do País. Entre eles, a renovação posta em curso pelos grupos amadores paulistas da década de 1940 e a institucionalização das artes cênicas, exemplificada pela criação, em 1948, da Escola de Arte Dramática (EAD), hoje ligada à Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.
No texto Renovação Teatral, publicado no jornal O Estado de S.Paulo em 18 de janeiro de 1945, Candido elogia os esforços de uma companhia profissional – no caso, a formada pelo casal Dulcina de Moraes e Odilon Azevedo – para incorporar os valores modernos que vinham sendo experimentados em cena pelos grupos amadores. Vale destacar que o crítico estava consciente dessas transformações não apenas pela perspectiva do espectador: Candido havia sido “ponto” (responsável por ditar falas para os atores por trás das coxias) no Grupo de Teatro Experimental, criado pelo amigo Alfredo Mesquita, que depois iria fundar a EAD.
“Com efeito, é a primeira vez que uma companhia profissional procura inverter a relação entre público e ator. Até aqui, o público tem determinado, com um peso que chega a ser tirânico, o comportamento do ator; este, sendo obrigado a não afastar-se daquelas normas que asseguram aceitação e casa cheia.”
Em três ocasiões, Candido foi chamado a se tornar “crítico de plantão”, substituindo o amigo Décio de Almeida Prado, professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP – antecessora da FFLCH -, na coluna Palco e Circos de O Estado de S. Paulo. Essas contribuições ilustram, mais uma vez, como o autor entendeu os valores do teatro moderno, sublinhando o novo papel desejado para o diretor na encenação. Exemplo disso é a coluna de 25 de agosto de 1951, dedicada à montagem de As Mulheres Não Querem Almas, realizada pelo Teatro do Estudante de São Carlos e dirigida por Vicente de Arruda Camargo:
“A direção foi sóbria na marcação e procurou assimilar os novos rumos que entre nós vão substituindo o individualismo e os velhos cacoetes, para obter, por meio da participação bem equilibrada do diretor, dos atores, dos cenaristas, dos técnicos de cena, um rendimento contínuo, mais atento aos resultados do conjunto do que aos brilhos isolados.”
É a análise de textos dramatúrgicos, contudo – terreno mais próximo da atividade da crítica literária –, que mais chama a atenção no volume. Candido detém-se sobre a obra do dramaturgo e amigo Jorge de Andrade em quatro momentos: na redação do programa para a peça Pedreira das Almas, nos prefácios às edições de Vereda da Salvação e Milagre na Cela e numa nota final para O Mundo Composto, escrita em 1980 e que permaneceu inédita até 2013.
Candido realiza uma apreciação de conjunto dos textos do dramaturgo, evidenciando os antecedentes a partir dos quais Andrade executou seu trabalho – a crise do mundo das oligarquias rurais – e destacando sua trajetória para questões sociais mais amplas. “Creio que em sua dramaturgia há, entre outras, três direções significativas: a evocação nostálgica da antiga classe rural dominante; a sua decadência, ao longo da qual os descendentes se integraram na sociedade urbana de maneira por vezes penosa; afinal o destino dos oprimidos pela oligarquia rural, os espoliados atirados na miséria.”
Destacam-se no conjunto os comentários feitos a Milagre na Cela, peça publicada em 1977 cuja encenação foi vetada pela ditadura militar (1964-1985). No enredo, uma freira, acusada de subversão, é torturada nos porões do regime por um delegado que acaba por estuprá-la, desencadeando as tensões e ambiguidades do drama. Candido considera Milagre na Cela uma peça admirável e expressão literária inédita da “realidade sinistra dos nossos dias”. Escreve o autor:
“O grande personagem desta peça talvez não seja nenhum dos figurantes, apesar da sua grande força; mas a tortura, abordada pela primeira vez entre nós como um fato com o qual é preciso conviver.”
Outro grande momento de Sobre o Teatro é o texto A Educação pela Noite, em que Candido discorre a respeito do teatro e da narrativa em prosa de Álvares de Azevedo. Trata-se de um ensaio originalmente lido na Academia Paulista de Letras em 24 de setembro de 1981, como parte das comemorações dos 150 anos de nascimento do autor romântico.
No texto, Candido interpreta Macário como obra que apresenta a visão tipicamente romântica da coexistência e do choque dos contrários – fenômeno chamado “binomia”, conforme o próprio Azevedo registra no prefácio da segunda parte da Lira dos Vinte Anos. Oposições manifestas nas figuras do protagonista Macário, de Satã e de Penseroso e em dois atos desigualmente compostos e que – análise inovadora do crítico – podem ter em Noite na Taverna sua continuação.
“(…) penso que, de fato, as duas obras [Macário e Noite na Taverna] foram deliberadamente vinculadas por Álvares de Azevedo, formando uma grande modulação ficcional que passa do drama à novela negra, numa ousada experimentação que amplia o ponto de vista romântico da mistura dos gêneros.”
O estudo de Candido que encerra a edição é A Culpa dos Reis: Mando e Transgressão em “Ricardo II”, ensaio vigoroso sobre a peça de Shakespeare, no qual o crítico elabora uma verdadeira teoria política sobre o mando. A história do soberano destituído de autoridade, cuja legitimidade fornecida pelo sangue real vê evaporar e é obrigado a abdicar da coroa, sem com isso se salvar do assassinato, oferece a Candido matéria para encarar o poder como algo sempre “transitório e relativo, mas indispensável e pesado”, que tem como “sócio” constante a destruição, levada ao limite na morte.
Demorando-se na simbologia empregada por Shakespeare em torno do sangue e da seiva, Candido chega à imagem do fluido. O sangue real, transmissor da herança e do direito, ecoa na simbologia vegetal, nos galhos das árvores que criam raízes. Mas, se o sangue foi o grande poder durante a Idade Média, o equivalente feudal do time is money burguês, ele não é mais suficiente quando o portador da legitimidade deixa de reunir capacidade para exercer o mando. A fraqueza do homem se impõe ao ritual da unção real e, assim, abre-se uma janela de validade política para a usurpação.
“O modo de ser do personagem Ricardo II parece elaborado para ilustrar a oscilação entre a pessoa e a sua função política. Ao mesmo tempo arrogante e humilhado, Ricardo alterna a prepotência com a submissão e passa da confiança cega ao desalento, a ponto de abdicar antes que a abdicação lhe seja imposta. (…) em Ricardo a divisão interior é consubstancial, isto é, algo inerente a seu modo de ser, podendo representar com maior clareza a dicotomia entre o eu e o outro, pressuposta na estrutura do mando.”
Conforme o professor João Roberto Faria assinala na apresentação do volume, as palavras que Candido mobilizou para o teatro são poucas e pontuais quando comparadas aos esforços a serviço da literatura, mas participam da mesma densidade analítica e interpretativa de seus melhores trabalhos.
Sobre o Teatro, de Antonio Candido, organização de João Roberto Faria, Editora Ouro sobre Azul, 168 páginas, R$ 75,00.
Fonte: Jornal da USP