Cada vez mais relevante nos debates de governança da rede, soberania digital foi o tema da última sessão principal do 13º Fórum da Internet no Brasil (FIB13), que terminou na última sexta-feira (2), em Uberlândia. Pela primeira vez, o evento organizado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) aconteceu em Minas Gerais, e contou ao longo de quatro dias com mais de 1,4 mil inscritos, 600 credenciais presenciais e 400 credenciais online. Foram mais de 1.500 visualizações nos vídeos da programação do Fórum, que terá a sua próxima edição, em 2024, na cidade de Curitiba (PR).
Durante a sessão principal desta sexta-feira (2), os palestrantes buscaram explorar os caminhos para a construção de uma agenda nacional sobre a soberania digital. A atividade, moderada por Rafael Evangelista, conselheiro da comunidade científica e tecnológica do CGI.br, começou com a explanação de Filipe Saraiva, professor da Faculdade de Computação e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Computação da UFPA, que apresentou dados do projeto Educação Vigiada, do qual participa.
Segundo o professor da UFPA, 79% das universidades e instituições públicas de ensino na América do Sul adotam plataformas do Google ou da Microsoft, sendo a do Google mais prevalente (63%). Realidade semelhante se verifica quando o recorte é feito no Brasil: 79% utilizam plataformas do Google ou da Microsoft, sendo 71% usam a primeira. “Quando falamos em soberania digital de um país, de um continente, e olhamos dados como esses, observamos que não temos soberania sobre os dados das nossas instituições de ciência, tecnologia e pesquisa. Quase 80% estão nos servidores dessas empresas”, alertou, completando que na Europa, o quadro é diferente, por existir uma cultura de que os dados têm que ser processados dentro do continente.
Na avaliação dele, o país precisa trazer esses serviços para o território nacional e então obter a soberania de dados, mas que depende de decisão política. Saraiva citou projeto em que está desenvolvendo uma solução-piloto na qual foram mapeadas as funcionalidades que Google Workspace for Education entrega para as instituições de ensino e os softwares livres que poderíamos fornecer aplicações semelhantes. “Exige investimento, orçamento para ter escala, mas é um caminho possível”.
Rodolfo Avelino, professor no Insper e componente da direção do Coletivo Digital, também trouxe a perspectiva da soberania dos dados. Ele salientou que mais 70% da infraestrutura de computação em nuvem mundial estão concentrados nas mãos de quatro empresas norte-americanas. “Onde os dados são armazenados e processados? Quem projetou, desenvolveu e opera a tecnologia? Qual a influência das big techs na formulação e evolução dos padrões e tecnologia?”, indagou.
“Os fóruns onde são discutidas as evoluções, não apenas dos protocolos de Internet, mas das tecnologias web, estão totalmente ocupados por essas grandes corporações. E aí busco entender se a Internet evolui ou a web vem evoluindo por necessidades técnicas ou para a ampliação do modelo de negócio e de domínios tecnológicos”, provocou.
Luca Belli, professor pesquisador da FGV Direito Rio e Coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS-FGV), conceituou soberania digital ou tecnológica como a capacidade de regular as infraestruturas digitais, os dados e os serviços de plataformas digitais. “Poder definir o seu próprio desenvolvimento econômico, social, cultural e tecnológico é uma condição essencial para a autodeterminação e autonomia estratégica de um país, ou seja, não ser dependente das decisões tecnológicas de atores externos, sejam eles países ou corporações”, explicou.
Ele destacou que um dos pontos essenciais para alcançar a soberania digital é a conectividade significativa. Citou a Índia como exemplo, que proibiu em 2017 o zero rating, o acesso sem custos a aplicativos – principalmente de redes sociais de empresas estadunidenses – sob determinadas condições. “Ao proibir o zero rating, as operadoras indianas foram obrigadas a diminuir os custos, contribuindo para maior conectividade. Nos últimos seis anos, o número de indianos conectados cresceu 250%, e os custos de conexão diminuíram 94%”.
Belli também reforçou a importância de educação digital para todas as gerações, não somente para as crianças: “Esse é um ponto essencial que deveria estar incluído em uma política de soberania digital para que o desenvolvimento tecnológico nacional se torne mais simples”.
“Ao falarmos de soberania digital, as palavras que vem na mente são cibersegurança e tecnologia”, comentou Mariana de Vasconcellos, da ELO, citando números da Federação Brasileira de Bancos (Febraban) que apontam o investimento de R$ 35 milhões em cibersegurança realizado pelos bancos em 2022 – a previsão é que ultrapasse R$ 45 bilhões em 2023. Apesar da alta cifra, os dados de Febraban indicam uma elevação de 165% em golpes envolvendo engenharia social, nos quais criminosos procuram enganar e persuadir vítimas a fornecerem informações sensíveis ou a realizarem ações, como executar códigos maliciosos e acessar páginas falsas.
Vasconcellos mencionou também a pesquisa TIC Domicílios 2022, do Cetic.br, que aponta um aumento no número de brasileiros com acesso à Internet, chegando a 149 milhões de usuários. “O Brasil tem 214 milhões de pessoas, é como se a população inteira do Estado de São Paulo ainda estivesse desconectada”. Ainda conforme a pesquisa, apenas 51% dos usuários verificam se uma informação online é verdadeira ou não. E 92 milhões de brasileiros só têm acesso à rede por meio do celular. “Esses dados são relevantes para pensarmos na soberania digital como resultado de múltiplos elementos. Fica difícil falar de país soberano digitalmente se não temos universalização de acesso, sem que a população seja educada digitalmente”, destacou.
Renata Mielli, coordenadora do CGI.br, enfatizou que é impossível discutir soberania digital sem antes falar em soberania nacional, e que os temas digitais estão no centro do debate geopolítico internacional. “O modelo econômico no qual o digital se sustenta é exatamente a extração e o uso de dados. É uma disputa estratégica, porque dado é conhecimento, é poder”.
Para ela, são muitos os papéis do Estado na construção de políticas soberanas de tecnologias digitais. “Na questão de como incentivos públicos são criados para promover infraestrutura, desenvolvimento tecnológico, estruturas públicas para setores estratégicos na área de desenvolvimento econômico, para que o Brasil deixe de ser apenas um consumidor de tecnologias e passe a ser um produtor de tecnologias”, afirmou, citando medidas que, segundo ela, já apontam para uma postura de mudança do atual governo federal com relação a uma perspectiva soberana de construção de desenvolvimento de ciência e tecnologia e inovação na área digital.
Renata ressaltou ainda que é preciso fortalecer a indústria nacional e criar um ambiente acadêmico, tecnológico e industrial para manter nossos recursos humanos no país. Falou também sobre a importância de se desenvolver plataformas próprias. “Não me refiro a redes sociais, mas dezenas de outras plataformas de interesse público que têm impacto na vida das pessoas, nas localidades, e que poderiam ser desenvolvidas com tecnologias e esforço da indústria nacional, do Estado, de parcerias público-privadas. Uma série de possibilidades para pensarmos plataformas, cujas arquiteturas estejam mais em sintonia com as necessidades culturais, sociais e econômicas da população brasileira”.
Sobre o Fórum da Internet no Brasil
O FIB, que em 2023 chega à sua 13ª edição, é uma atividade preparatória para o Fórum de Governança da Internet (IGF) e busca incentivar debates sobre as questões mais proeminentes para a consolidação e expansão de uma Internet no Brasil cada vez mais diversa, universal e inovadora. Visa, ainda, evidenciar os princípios da liberdade, dos direitos humanos e da privacidade, de acordo com o decálogo de Princípios para a Governança e Uso da Internet do CGI.br.
Sobre o Comitê Gestor da Internet no Brasil – CGI.br
O Comitê Gestor da Internet no Brasil, responsável por estabelecer diretrizes estratégicas relacionadas ao uso e desenvolvimento da Internet no Brasil, coordena e integra todas as iniciativas de serviços Internet no País, promovendo a qualidade técnica, a inovação e a disseminação dos serviços ofertados. Com base nos princípios do multissetorialismo e transparência, o CGI.br representa um modelo de governança da Internet democrático, elogiado internacionalmente, em que todos os setores da sociedade são partícipes de forma equânime de suas decisões. Uma de suas formulações são os 10 Princípios para a Governança e Uso da Internet (https://cgi.br/resolucoes/documento/2009/003). Mais informações em https://cgi.br/.
Confira um pouco mais sobre as demais sessões principais do FIB13, que falaram sobre as perspectivas da participação brasileira no Global Digital Compact e sobre o tema Regulação de Plataformas no Brasil. Acesse, ainda, os vídeos de todas as discussões do FIB13 na playlist do evento: https://www.youtube.com/playlist?list=PLQq8-9yVHyOY89mxP0TtRYmoc2g6odyax.