Por Laís Malek
Literal e simbolicamente, as sementes para o futuro são plantadas no filme Eu Sou Neta dos Antigos, de Adriana Miranda. O documentário, que conta a história de lideranças indígenas que trabalhavam para garantir a preservação de espécies de plantas no interior de Roraima, foi exibido na noite de quinta-feira (10) como parte da mostra Première Brasil: O Estado das Coisas do Festival do Rio 2024. Depois da sessão, o público acompanhou um bate-papo com a equipe do filme.
A diretora do longa, Adriana Miranda, conta que a ideia do filme surgiu quando estava fazendo um curta-metragem, Grão. Ela teve contato com uma feira de troca de sementes nativas e se interessou pelo tema. A pandemia da Covid-19 atrasou o projeto, mas deu tempo para começar a captação dos recursos fora do Brasil. “A minha ideia era fazer a troca de sementes entre comunidades quilombolas, assentados e povos indígenas. Não tinha dinheiro para fazer tudo, então precisei escolher um. Resolvi ir para os povos indígenas e comecei a pesquisar quais eram os povos que tratavam as sementes nativas. Cheguei ao Conselho Indígena de Roraima, começamos essa relação em 2019, e desde então ela só veio crescendo”, explica.
Uma das personagens do documentário, Marileia Macuxi, representante do povo Macuxi, participou do debate. Ela falou sobre a importância da preservação das sementes nativas e sua relação com os povos indígenas. “Tudo que vocês viram são lugares sagrados, que merecem respeito. Nós, os povos indígenas, temos um contato muito forte com a natureza. Uma árvore, para nós, não é apenas uma árvore, mas uma vida, que abriga várias vidas. Quando falamos da preservação da semente, ela está interligada ao território: na água, na serra, na terra, no próprio chão que nós pisamos”.
Eu Sou Neta dos Antigos, de Adriana Miranda
O filme é dividido em eixos temáticos, como terra e ancestralidade, que aparecem na tela acompanhados da definição do dicionário e uma interpretação ligada ao significado para os povos originários. Adriana conta que, para cada um desses eixos, há também um mini documentário de 10 minutos, que serão lançados como parte de uma campanha de impacto da obra. “As palavras são pilares fundamentais da luta indígena, que dizem respeito a todo o movimento e queríamos deixar isso marcado de maneira bem clara. Na montagem, ficamos pensando onde colocaríamos cada palavra, para não parecer que se referia àquele momento específico e não ao filme todo. No fim, percebemos que ficaria subentendido, e estabelecemos uma métrica como o método de montagem”, explica.
Em alguns momentos do filme, os personagens falam em seus idiomas originários, e não há tradução na tela. A diretora conta que debateu com a roteirista Lucia Tupiassu, e as duas optaram por deixar alguns trechos sem tradução. “A gente não queria fazer uma tradução literal, cartesiana, o grande trecho que não foi traduzido é uma bênção. Nós da equipe passamos por aqueles rituais, que não tinham tradução, mas sentíamos que estávamos sendo benzidos, que a pajé estava deixando a gente entrar nos territórios. Se fosse traduzir, iríamos perder a mágica. Quem está assistindo tem que sentir a mesma coisa que a gente sentiu quando estava lá”, conta a diretora.
O documentário traz uma narrativa não-linear, com a história da protagonista, Kelliane Wapichana, sendo contada pouco a pouco. Primeiro, vemos as mãos segurando as sementes e passando para uma outra pessoa. Depois, aparece um ritual de bênçãos da pajé de sua tribo, a aplicação de dos grafismos na pele, a ornamentação com adereços naturais, e por fim a vemos em cima de uma árvore, observando a região. Ela exerce o papel de guardiã do ambiente, garantindo que a biodiversidade local seja preservada através das sementes. Uma das últimas cenas do longa traz a protagonista apresentando uma feira de exposições de alimentos produzidos na região.
Eu Sou Neta dos Antigos, de Adriana Miranda
Na tela, vemos que o trabalho de preservação e distribuição das sementes já está dando frutos: de um ano para o outro, a quantidade de espécies de feijão apresentadas em uma exposição da região quase triplicou, passando de 6 para 17. “Queria uma narrativa que fugisse do documentário tradicional, em que as pessoas sentam e contam alguma coisa para a câmera. Queria que as pessoas pudessem participar dessa vivência, como nós também participamos de alguns rituais. A minha ideia era que fosse uma história que se sentisse, e se contasse pouco”, avalia a diretora.
Além da fotografia, a trilha sonora também dá o tom da narrativa. A compositora Flavia Tygel conta que bebeu de diversas fontes para compor a musicalidade do longa — desde músicos clássicos como Beethoven, que aparece como referência na cena inicial do filme, até composições de rock feitas por artistas indígenas. “Foi um percurso, sonoramente falando. Primeiro, de muito respeito às origens do que estava ali, do que foi captado no som direto, de conseguir sacralizar da forma que é. A gente queria criar uma profundidade, uma densidade, mas sobretudo uma sutileza. A trilha é uma junção, um balaio de sonoridade, que honra esse aspectos da raiz e da semente”, conta.
Debate com a equipe de Eu Sou Neta dos Antigos, no Estação Net Rio, durante o Festival do Rio 2024
Marileia conta também que a expectativa dos personagens do filme para o lançamento do longa está alta. Ela conta que permitir que a história fosse contada, mesmo que por uma equipe formada por pessoas brancas, não foi uma decisão difícil — mas ressalta que é necessário ter cuidado com o material produzido. Ao final do debate, ela mandou um importante recado para todos os espectadores do longa. “A gente acredita muito que esse trabalho vai fluir, já está fluindo, e vai conseguir mostrar para outro povo a nossa realidade. A vida indígena importa, e a forma da gente se proteger é demarcando as terras indígenas, que de fato são nossas”, finaliza.