“Nosso ponto de partida é uma simples constatação: a economia brasileira, após dois decênios de rápido crescimento, ao impulso da industrialização substitutiva de importações, quando parecia haver reunido condições para gerar o seu desenvolvimento, foi afetado de uma paralisia que está transformando o atual decênio em uma das mais prolongadas crises de nossa história econômica moderna”
Um projeto para o Brasil, 1968
“A nova mansão construída na euforia da industrialização e da urbanização exibe gretas em todas suas paredes. Já a ninguém escapa que nossa industrialização tardia foi conduzida no quadro de um desenvolvimento imitativo que reforçou tendências atávicas de nossa sociedade ao elitismo e à opressão social.
Quem somos, 1984
As duas epígrafes acima são do livro Celso Furtado, Trajetória, Pensamento e Método (Ed. Autêntica), de Alexandre Freitas Barbosa, professor de História Econômica e Economia Brasileira do Instituto de Estudos Brasileiros da USP (IEB-USP) e Alexandre Machione Saes, professor de História Econômica da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária (FEA) da USP. Como mostram as duas datas das publicações, os textos refletem momentos diferentes da vida brasileira.
Em 1968, a sociedade brasileira atravessava um dos mais conturbados momentos após o golpe militar de 1964 que desembocaria no famigerado AI-5, cassações e exílios, seguidos do então chamado milagre econômico no governo Médici do início anos 1970, que apregoava crescimentos de 10% do PIB anual, séria e duramente contestados pela oposição.
Em 1984, por sua vez, o governo militar estava a caminho de seu fim, com Tancredo Neves sendo eleito presidente indiretamente pelo Congresso, em janeiro de 1985. Morreria antes de tomar posse e seria substituído por José Sarney. Furtado viraria Ministro da Cultura, uma espécie de reconhecimento ao nome que construíra ao longo da carreira, mas que, naquele momento, o apartava das questões econômicas do país.
Pessimismo com o andar da economia
Nesses dois momentos citados acima, de recrudescimento do governo militar (1968) e de seu fim (1984), sua visão registrava pessimismo com o andar da economia do país, de cujo comando havia sido alijado pelos militares.
Furtado havia sido uma das estrelas da constelação do governo de João Goulart que, em 1961, como vice-presidente, herdara a Presidência do instável e imprevisível Jânio Quadros, que renunciara, no que, até hoje, é interpretado como uma mal sucedida tentativa do golpe de Estado.
O economista levara para o governo Goulart — que herdava o nacionalismo de Getúlio Vargas, que se suicidara em seu segundo governo, em 1954, — a experiência de suas passagens e debates em espaços especiais: a universidade britânica de Cambridge e, mais importante, na Comissão Econômica para a América Latina e Caribe – Cepal, liderada pelo aplaudido economista argentino Raul Prebisch. Também trazia na sua bagagem de economista/pensador/escritor a produção de sua mais importante obra, a Formação Econômica do Brasil, de 1959, “um marco tanto em sua trajetória, como na história do pensamento econômico e social brasileiro e latino-americano”, na visão de seus biógrafos.
No final do governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitscheck, o paraibano Furtado passou a dirigir um de seus sonhos, tornando-se o primeiro presidente da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste – a Sudene – que tinha a árdua missão de criar condições para tirar do atraso sua região natal. Nessa época, escreveu em A pré-revolução brasileira: ”O país está maduro para começar a refletir sobre seu próprio destino. Dos debates gerais e das manifestações da opinião pública deverão surgir as plataformas que servirão da base à renovação da representação popular”.
Ministro do Planejamento na presidência de João Goulart, que acumula com a presidência da Sudene, é escolhido “para apresentar em tempo recorde um plano de governo”, voltado para dar sustentação política ao mandatário, que ainda precisava ganhar a batalha da volta ao presidencialismo, uma vez que o parlamentarismo lhe fora imposto, em 1961, como condição para a substituir o renunciante Jânio Quadros. Nasce assim o Plano Trienal.
Um plano ambicioso
E nasce ambicioso. Seus quatro objetivos eram, segundo os autores: manter o crescimento elevado em torno de 7% ao ano; reduzir a inflação à metade do nível observado em 1962 (50,1%); reduzir o custo social do desenvolvimento, melhorar a distribuição de seus frutos e atenuar as disparidades regionais de níveis de vida.
Ambição que durou pouco.
No fim de março de 1964, juntamente com todo o governo João Goulart, Celso Furtado é tragado pela reação da direita brasileira e dos militares, que inconformados com o progressismo das propostas janguistas, derruba o herdeiro político de Getúlio Vargas. Furtado parte para o exílio, onde vai brilhar na Sorbonne, em Paris, e em conferências ao redor do mundo, nas quais espraiou sua visão crítica a respeito das economias brasileira e global.
Vale registrar a observação dos autores na conclusão do livro sob o título “50 anos de produção intelectual: um método e várias interpretações”: “Sem desenvolvimento econômico, na acepção valorativa de Furtado (de melhoria do bem estar com homogeinização social), e num contexto de prevalência da modernização dos padrões de consumo, a evolução das reformas neoliberais produziu no centro os resultados já vivenciados há décadas na periferia: crescente desigualdade econômica; ampliação das formas das formas de exploração e expropriação do trabalho e do meio ambiente; profunda concentração do poder econômico e político das grandes empresas; ampliação da instabilidade econômica; e, no limite, o enraizamento da anomia social, comprovado pelas próprias crises das democracias”.
Nos seus 84 anos de vida (1920-2004), agregando à sua visão da secura da vida nordestina (nasceu em Pombal, na Paraíba) a sua vasta e intensa experiência internacional, Furtado apontou caminhos de desenvolvimento que, até hoje, o Brasil persegue, mas trilha com grandes dificuldades, desvios e carências.
Fonte: Jornal da USP