Por João Vitor Figueira
Denúncia e sensibilidade marcam Manas, primeiro longa-metragem de ficção da cineasta Marianna Brennand, que apresentou o filme, ao lado de sua equipe, em uma sessão seguida de debate realizada no Cine Odeon – CCLSR no último domingo (6). O drama disputa o Troféu Redentor na competição principal do 26º Festival do Rio após vencer o prêmio máximo da mostra paralela Giornate Degli Autori no Festival de Veneza.
Manas traz um contundente, mas também delicado, para uma realidade cruel: a rotina de meninas e mulheres que sofrem abusos na Ilha de Marajó, no Pará, oferecendo um retrato das violências estruturais enfrentadas nessa região. A trama se passa em uma comunidade ribeirinha no coração da Amazônia, acompanhando a rotina da adolescente Marcielle, de 13 anos, que vive com a mãe, o pai e mais três irmãos nas margens do Rio Tajapuru.
O filme começou a ser desenvolvido em 2013, quando a cineasta Marianna Brennand nem sequer imaginava que o projeto se tornaria o primeiro filme de ficção de sua carreira. A diretora contou que sentiu a necessidade de fazer um documentário sobre a exploração sexual de crianças na Ilha de Marajó após uma conversa com a artista Fafá de Belém, que narrou relatos sobre crimes contra a infância e a adolescência que ocorrem no Pará. Entretanto, o projeto esbarou num dilema ético.
“Logo no início dessa pesquisa, entendi que seria impossível fazer esse documentário”, assumiu Brennand. “Eticamente, eu jamais colocaria crianças e mulheres que tinham passado por situações de violência muito traumáticas para recontar essas histórias. Entendemos que só seria possível contar essa história através da ficção.”
Manas, de Marianna Brennand
Jamilli Correa interpreta Marcielle, também chamada de Thielle, uma adolescente que venera a imagem de sua irmã mais velha, Claudia, que deixou a humilde casa onde vivia com a família para trás após “arrumar um homem bom”. Na região, abusos contra as crianças são mais do que um segredo velado, são uma questão sistêmica e enraizada na cultura local, inclusive quando ocorrem no ambiente familiar. Muitas são as meninas que se tornam “balseiras”, atracando com suas canoas em barcos que passam pela região, supostamente para vender produtos diversos, mas sofrendo diversas violências sexuais e de gênero.
Marianna Brennand, também corroteirista e coprodutora do filme, destacou que um forte imperativo ético marcou a produção do filme. A cineasta contou que não deixou as crianças lerem o roteiro, que trouxe uma série de atividades lúdicas para a preparação do elenco mirim e que contou com uma série de consultores e psicólogos para entender como representar de forma respeitosa e precisa as nuances emocionais apresentadas pelas personagens.
Manas, de Marianna Brennand
“Cuidado e respeito pautaram a nossa jornada inteira”, pontuou a diretora. “Manas mostra que é possível a gente falar de uma realidade horrível com cuidado ético, delicadeza e respeito. Para mim, é uma lição para a vida, não só no cinema. A gente tem que encarar as questões difíceis com cuidado, empatia e generosidade”, completa Brennand.
No debate, Jamilli Correa, a jovem atriz que interpreta a protagonista Marcielle, revelou que só entendeu a profundidade de certas cenas quando assistiu ao filme. “Eles tomaram o maior cuidado durante as gravações”, disse.
Manas, de Marianna Brennand
A cineasta Marianna Brennand também teve uma preocupação visual de não estetizar a violência na fotografia do filme. “A gente tem um cenário que é muito belo, mas ao mesmo tempo te oprime, te violenta”, comentou. Sylvia Palma, diretora e jornalista que mediou o debate, analisou que a direção do filme mobiliza uma série de símbolos para construir essa narrativa opressiva visualmente: “Há aquele silêncio que grita, aquele vento que sufoca, aquele igarapé que é uma prisão”.
Dira Paes, que vive a policial Aretha, falou que sua personagem é inspirada em um delegado em particular e na figura da Irmã Marie Henriqueta, ativista pelos direitos humanos que corajosamente enfrenta o tráfico de crianças na região, muitas vezes arriscando a própria vida. “A personagem Aretha representa a presença do Estado e, onde há essa presença, há a possibilidade de reverter essa realidade,” destacou a atriz, sublinhando a urgência de enfrentar a questão que não se resume ao que acontece na Ilha de Marajó. “É um problema endêmico do mundo”, afirma.
Fonte: Festival do Rio