Com a contribuição das mudanças climáticas, do desmatamento e do forte El Niño que teve início na metade do ano passado e se estendeu por todo o primeiro semestre de 2024, uma seca extrema atinge várias regiões do Brasil em 2024. É a pior estiagem em 44 anos, de acordo com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Como resultado, incêndios fora de controle se alastraram pelo país, somando mais de 243 mil focos de fogo desde o início do ano até o dia 31 de outubro. Desse total, quase 48% (mais de 116 mil focos) ocorreram em setembro e outubro.
Na Amazônia, já foram registrados mais de 120 mil focos este ano. Mais de 76 mil foram identificados no Cerrado e mais de 14 mil no Pantanal. Entretanto, a catástrofe poderia ser ainda maior se não fosse pelo trabalho intenso de centenas de brigadistas comunitários que combatem o fogo neste momento em diversas partes desses biomas.
Ao longo dos últimos quatro anos, o WWF-Brasil tem apoiado, junto a parceiros – com treinamento e equipamentos – a formação de brigadas comunitárias voltadas à prevenção e ao combate inicial aos incêndios. “O foco são paisagens estratégicas nos três biomas, com a formação e fortalecimento de brigadas de povos indígenas e comunidades tradicionais”, afirma Osvaldo Barassi Gajardo, especialista em conservação do WWF-Brasil, que coordena as ações de resposta emergencial da organização desde 2019.
Só em 2023, foram equipadas e treinadas 20 brigadas em diferentes pontos do Pantanal, em parceria com o PrevFogo, do Ibama, e com a organização Ecoa. Outras 12 foram fortalecidas e equipadas no Cerrado e mais oito na Amazônia, em regiões estratégicas como Rondônia, Pará, Maranhão, Roraima e Tapajós. Naquele ano, mais de mil itens foram doados às brigadas para melhorar a resposta e o desempenho nas ações de prevenção e combate, além de fornecimento de combustível e EPIs (Equipamentos de Proteção Individual).
Foram doados também 40 drones para proteção territorial, para associações parceiras, que são utilizados no combate e prevenção a incêndios. Mais de 300 pessoas foram treinadas para o uso do equipamento, principalmente líderes indígenas.
“Essa estratégia teve origem na resposta emergencial que foi conduzida em 2019, quando a Amazônia também enfrentou grandes incêndios. Com as mudanças climáticas e os incêndios mais frequentes, entendemos que era preciso estender essas ações a outros biomas e apoiar a formação e fortalecimento de brigadas comunitárias de forma constante”, salienta Gajardo. Desde então, no total, por meio de parceiros ou ação direta, o WWF-Brasil tem fortalecido mais de 70 brigadas comunitárias – 30 no Pantanal, 10 no Cerrado e 30 na Amazônia -, o que corresponde a mais de 500 brigadistas voluntários apoiados com treinamentos e equipamentos.
A estratégia tem se mostrado acertada, porque, além do combate ao fogo, grande parte do trabalho das brigadas consiste na prevenção e orientação da população – e isso precisa ser feito de forma constante, de acordo com o biólogo André Luiz Siqueira, diretor-presidente da Ecoa, que atua como parceira do WWF-Brasil no Pantanal.
É Siqueira quem coordena as ações de suporte ao combate a incêndios em diferentes regiões do bioma. Nos últimos quatro anos, a Ecoa formou e equipou 23 brigadas em diversos pontos do Pantanal, sendo 19 delas em parceria com o WWF-Brasil, com treinamento do PrevFogo.
“O trabalho das brigadas comunitárias não pode ser apenas reativo, precisa ser ininterrupto e sistemático. Quando o Pantanal para de queimar, as pessoas esquecem do problema e se descuidam da prevenção, enquanto os editais e recursos acabam indo para outras áreas. Por isso temos que falar de fogo o tempo todo”, diz Siqueira.
No Pantanal prevenção fez a diferença
O trabalho de prevenção é realizado com foco na mudança de hábitos das vizinhanças, com campanhas nos rádios e nas escolas, principalmente nas comunidades indígenas, segundo ele, já que as Terras Indígenas têm estrutura mais organizada. Siqueira afirma que as brigadas têm um papel fundamental no combate inicial ao fogo, impedindo a propagação e o início de grandes incêndios, mas o papel da educação ambiental, vigilância e monitoramento é fundamental.
“Iniciamos em julho o trabalho dessa temporada, prevendo que seria um ano caótico por causa da seca extrema. Tivemos bastante trabalho com a vigilância. Flagramos turistas e moradores fazendo fogueiras no chão e pessoas que usavam fogo em rituais religiosos. Muitos incêndios começam assim – este ano, três deles começaram com os despachos religiosos”, conta.
Um exemplo do sucesso da estratégia no Pantanal foi o da Área de Proteção Ambiental (APA) Baía Negra, em Ladário. Segundo Siqueira, em 2020 o fogo atingiu cerca de 50% dos 6 mil hectares da APA, uma região com biodiversidade muito expressiva. “Uma brigada voluntária foi formada e, em 2021, iniciamos um projeto de monitoramento e vigilância que resultou em uma redução dos incêndios. Em 2024 não houve nenhum incêndio de grandes proporções”, destaca.
“Em 2020, foi uma devastação total e o fogo chegou perto das casas aqui na APA Baía Negra. Até o ano passado, ainda estávamos nos recuperando desse desastre. Este ano, quando vimos o fogo devastando novamente o Pantanal, matando animais e plantas, tivemos muito medo do fogo atingir a APA, mas graças a Deus, a todo momento, de dia e de noite, fizemos monitoramento e não chegou à nossa área”, conta Virginia Paes, moradora da APA e líder da brigada comunitária local.
Virginia conta que é gratificante para os brigadistas saber que onças, antas e veados campeiros e inúmeras outras espécies estão seguras dentro da APA. Mas quando o fogo atinge áreas extensas, o impacto sobre a fauna é dramático para quem vê a situação de perto.
“Como brigadista, já passei por situações difíceis”, conta Virgina, emocionada. “Em uma ocasião, em conjunto com o pessoal do PrevFogo, estávamos combatendo o fogo que havia atingido uma área bem extensa e me deparei com uma sucuri toda queimada, se contorcendo. É muito triste a gente ver que nessa hora a gente se sente impotente. Queremos fazer algo para salvar os animais. Uma cobra inofensiva, tão linda, pedindo socorro e a gente não pode fazer nada, a não ser chorar. Foi a primeira vez que me senti pequena diante de uma situação. Mas, neste ano, graças a Deus, a reserva não foi atingida”, contou.
Na aldeia Mãe Terra, uma das sete aldeias da Terra Indígena Cachoeirinha, uma brigada foi formada em 2020 e reestruturada em 2022. Em 2024, um incêndio iniciado em um caminhão em uma fazenda chegou até a cidade de Miranda e entrou na aldeia. “O pessoal da brigada teve muito trabalho nas últimas semanas. Mas é uma das brigadas mais organizadas que temos e eles estão conseguindo controlar”, conta Siqueira.
“Aqui, na Terra Indígena Cachoeirinha, tivemos um ano de muita dificuldade em relação a queimadas na área indígena – o pior desde 2021,que foi o ano mais crítico”, conta Caleomar Fonseca, brigadista voluntário da aldeia Mãe Terra. Ele destaca, porém, que em 2024, com a brigada bem estruturada e equipada, foi possível evitar danos maiores.
“Somos 21 brigadistas, sendo 10 mulheres e 11 homens. Quando surge algum foco de incêndio, somos os primeiros a chegar à linha de frente, no momento certo para o combate inicial. Antes,quando não tínhamos monitoramento, não era possível localizar os focos de incêndio para agir com rapidez. Com o monitoramento feito pela SOS Pantanal, Ecoa, WWF-Brasil e o PrevFogo, quando surge um foco de incêndio já estamos preparados”, diz Caleomar.
Brigadas indígenas na Amazônia
Na Amazônia, a mobilização sistemática das brigadas comunitárias indígenas tem feito a diferença, de acordo com Israel Vale, coordenador de Monitoramento e Proteção Territorial da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, parceira do WWF-Brasil no bioma, sediada em Rondônia.
“Até 2019, não se falava em brigadas comunitárias indígenas. O combate ao fogo era considerado importante no Cerrado e no Pantanal, mas ninguém achava que era necessário na Amazônia. Com o apoio do WWF-Brasil, começamos a trazer essa ideia para cá e hoje é um trabalho imprescindível. Na Terra Indígena Sete de Setembro, por exemplo, duas brigadas estão neste momento em intenso combate contra o fogo. Se não fossem eles, o cenário seria, muito, muito pior, pois as brigadas do PrevFogo não têm pessoal suficiente e nem a presença no local para combate imediato no início dos incêndios”, explica.
De acordo com Vale, além das duas brigadas na TI Sete de Setembro, há outras em intensa atividade em Rondônia, nas Terras Indígenas Rio Branco, Pacaás-Novas e Uru-ue-wau-wau e na Reserva Extrativista Rio Cautário. “Todas estão bem treinadas e equipadas. Em 2023, na TI Sete de Setembro, foi formada a primeira brigada oficial indígena de Rondônia – ou seja, foi integrada ao PrevFogo, que treinou e contratou os brigadistas do povo Paiter-Suruí”, afirma.
Membro da brigada comunitária indígena da TI Rio Branco, Derico Tupari foi um dos indígenas que receberam capacitação para a pilotagem de drones, oferecida por uma parceria entre a Kanindé e o WWF-Brasil. Neste ano, o equipamento foi utilizado para localizar e combater focos de incêndio.
“Eu nunca viajei de helicóptero e não conhecia metade do meu território. Sobrevoando a área para monitorar o fogo, pela primeira vez vi o território por cima e é uma coisa incrível, maravilhosa. Mas para a minha família e para o povo Tupari, ver nosso território sendo queimado é algo terrível. É uma sensação de tristeza muito grande, porque sabemos que ali estão morrendo as árvores, as aves, répteis e mamíferos. É muito impactante ver o fogo destruindo uma floresta que demorou milhares de anos para ficar em pé”, conta Derico.
Segundo ele, o impacto negativo da fumaça na saúde humana é evidente para o povo Tupari. “Nós, indígenas, sabemos que ali não queimam apenas as folhas boas, mas também as folhas más, que pioram a respiração, provocam febre e enxaqueca. Mas essa é mais uma razão para nos esforçarmos no combate ao fogo. Conseguimos controlar os focos e, graças a Deus, choveu na região e os incêndios não chegaram a durar duas semanas”, disse o brigadista.
Ação contínua no Cerrado
No Cerrado, as brigadas comunitárias têm realizado um trabalho igualmente decisivo, de acordo com Amilton Sá, coordenador-executivo da Rede Contra o Fogo, que atua na região do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Goiás.
“As brigadas têm melhorado muito o tempo de respostas às ocorrências, o que é uma questão chave no combate aos incêndios. Já atuamos em 150 focos de fogo este ano. Muitas vezes somos os primeiros a chegar, em outras, alcançamos áreas onde o poder público não tinha condições de chegar. As brigadas comunitárias têm feito a diferença”, conta Sá.
Depois dos incêndios de grandes proporções que atingiram o Cerrado em 2017, a sociedade civil decidiu se organizar e, com financiamento coletivo, conseguiu equipar 120 brigadistas em 2018. Como a região é próxima ao parque, o treinamento foi feito em parceria com o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). Assim, nasceu a Rede Contra Fogo, sediada em Alto Paraíso de Goiás, que passou a dar suporte à estruturação de brigadas voluntárias em toda a região”, disse Sá.
Desse processo, surgiu também a Brigada Voluntária Cavalcante (Brivac), de Cavalcante, e mais tarde foram organizadas brigadas setoriais comunitárias em São Jorge – outro município vizinho -, em diversos assentamentos da região e em algumas áreas consideradas estratégicas. A Rede Contra o Fogo e a Brivac tiveram apoio do WWF-Brasil, a partir de 2021, para a aquisição de equipamentos. Atualmente, de acordo com Sá, atuam na região 150 brigadistas treinados e equipados.