Por Isabella Rodrigues
“A favela no debate global” e “O olhar das favelas apresentado ao mundo” ecoam como um chamado por uma nova era de participação popular no cenário internacional. Em agosto, o Rio de Janeiro foi palco do F20 e do G20 Favelas, iniciativas que criaram um espaço de protagonismo para as vozes de territórios historicamente marginalizados e marcaram uma virada no diálogo global sobre direito à cidade, justiça social e ambiental.
O G20 é o principal fórum de cooperação econômica internacional e reúne as maiores economias do mundo para discutir os desafios globais. Com a presidência do Brasil, este ano, o país assume um papel central em pautas como o combate à fome, pobreza e desigualdade, o desenvolvimento sustentável e a reforma da governança global, assuntos prioritários para o atual governo brasileiro.
A cúpula do G20, que ocorrerá no Rio de Janeiro nos dias 18 e 19 de novembro, será o ápice desse processo, onde líderes mundiais irão discutir e aprovar medidas para enfrentar os desafios globais. Uma novidade desta presidência brasileira no encontro é o G20 Social, um espaço dedicado à participação da sociedade civil, onde diferentes atores sociais, incluindo moradores de favelas, poderão influenciar as decisões tomadas no fórum.
“Quem sabe da favela é o favelado”
O F20, organizado pelo Voz das Comunidades, surge como uma resposta às necessidades das favelas, oferecendo uma oportunidade de mobilizar moradores em causas que possam influenciar as discussões do G20. Na abertura do F20 no dia 8 de agosto, na Casa Voz Vidigal, na zona sul do Rio de Janeiro, lideranças de favelas cariocas discutiram temas como justiça social, justiça climática e o papel do G20 na redução de riscos de desastres nas favelas.
“A gente quer incluir muito mais a favela nos debates locais, regionais e especialmente globais a partir do que acontece dentro dela”, destaca Gabriela Santos, diretora do Voz das Comunidades e uma das organizadoras do F20.
Identificar e priorizar questões relevantes estão entre as ações propostas. Nesse sentido, a representação de territórios historicamente excluídos dos processos de tomada de decisão se torna fundamental. Segundo Gabriela, ao conectar as comunidades das favelas com líderes globais e as agendas do G20, o F20 desempenha um papel fundamental na construção de um mundo mais inclusivo, justo e sustentável para todos. Ela destaca que o F20 é mais do que um evento; “é uma oportunidade de esperança, um chamado à ação e uma celebração da força e resiliência das comunidades faveladas”.
E o G20 Favelas amplia ainda mais a participação das favelas nas discussões globais. O evento é organizado pela Central Única das Favelas (CUFA), pela Frente Parlamentar das Favelas e pela Frente Nacional Antirracista (FNA). Com conferências realizadas simultaneamente em 21 estados brasileiros no dia 24 de agosto, essa iniciativa teve cerca de 3 mil favelas representadas em torno de pautas estratégicas que serão levadas à Cúpula do G20 em novembro.
Gabriel Oliveira, coordenador-geral do G20 Favelas, afirmou na abertura da Conferência Estadual das Favelas do Rio de Janeiro: “A favela agora está sendo colocada onde ela deve, que é no centro do debate, da discussão global. A gente não pode esquecer estes territórios, a gente não pode deixar que eles fiquem à margem de toda a discussão que passa sobre a economia no mundo”.
Uma nova perspectiva para o direito à cidade
O conceito de direito à cidade, cunhado por Henri Lefebvre, defende que todos os habitantes devem ter o direito de participar ativamente na construção e no uso dos espaços urbanos. Nas favelas, o direito à cidade se traduz na garantia de acesso a serviços essenciais, como saneamento, educação, saúde e moradia digna, reivindicações históricas dos moradores desses territórios.
Lino Teixeira, coordenador de Políticas Urbanas do Observatório de Favelas, destaca: “A luta pela garantia de direitos que não são contemplados é o que veio garantir que esses grupos sociais se mantivessem na cidade e conseguissem ocupar determinados espaços. Mais do que sobreviver, as formas de afirmação de modos de vida não hegemônicos conseguem disputar o próprio sentido de cidade, desestabilizando a relação entre centro e periferia”.
No Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 11,4 milhões de pessoas vivem em favelas, onde a falta de acesso a serviços básicos, como água potável e saneamento, é apenas um dos desafios. Em muitos casos, a insegurança estrutural das moradias, localizadas em áreas de risco, expõe os moradores a desastres naturais, como deslizamentos de terra.
A urbanização em áreas de risco, que triplicou nos últimos 38 anos conforme o MapBiomas, agrava esses problemas e reforça a urgência de ações voltadas para a adaptação às mudanças climáticas. Atualmente, 3% da área urbana total do país está em regiões de risco, enquanto nas favelas esse percentual sobe para 18%, segundo o mesmo levantamento.
Teixeira salienta que as formas de incidência política no campo das políticas urbanas, comuns a várias favelas desde os anos 60 e 70, abrangem desde a luta pela permanência nos territórios até a conquista de infraestrutura básica, como água, esgoto, postos de saúde, creches e escolas.
O pesquisador discute a capacidade das favelas de influenciar políticas públicas, especialmente em tempos de crise. Para ele, a pandemia mostrou como as favelas constroem formas únicas de luta política, de mobilização e de redes de solidariedade. “Esse tipo de organização vai sempre existir, desestabilizando a noção de centro e periferia e influenciando políticas públicas”, diz.
Teixeira também ressalta que, apesar das mudanças, as lutas por saneamento, urbanização, habitação e mobilidade urbana permanecem centrais. Ele relembra que, nos últimos anos, debates sobre raça e gênero, assim como questões ambientais e climáticas, ganharam força, especialmente no contexto das favelas. Essas pautas, que vêm sendo discutidas há tempos, se consolidaram como fundamentais na agenda de incidência política popular, apontando para a necessidade de abordar o racismo ambiental e as injustiças climáticas que afetam desproporcionalmente os moradores de favelas e periferias.
Perspectivas de futuro
Tanto o F20 quanto o G20 Favelas além de levantarem questões críticas, propõem soluções colaborativas que buscam influenciar políticas globais e garantir que as demandas das periferias sejam ouvidas.
O impacto do G20 Favelas será ampliado pela continuidade das discussões no Fórum Mundial da Favela. Esta iniciativa, que ocorrerá em vários países, terá sua primeira edição no Rio de Janeiro, em setembro deste ano. As propostas discutidas serão consolidadas e encaminhadas para a Cúpula do G20 Social e para o encontro de chefes de Estado do G20 em novembro, onde as recomendações políticas definidas pelos grupos de trabalho do F20 também serão apresentadas.
“As pessoas que habitam os territórios favelados, majoritariamente mulheres negras, traçaram estratégias para permanência e para a vida, para cultuar as memórias dos seus territórios e garantir o futuro desses territórios”, destaca Junior Pimentel, pesquisador do eixo de Políticas Urbanas do Observatório de Favelas.
Pimentel acredita que movimentos como esses são fundamentais, pois ao “colocar a favela no centro do debate global” a partir dessas estratégias, inventividades e redes coletivas será possível chegar a uma solução para os problemas que historicamente afetam esses territórios.
O pesquisador aponta a importância especialmente em debates que envolvem racismo ambiental e a negligência estatal que essas comunidades enfrentam há décadas. Ele avalia que a saída para superar essas camadas de injustiça é garantir que as experiências de quem vive nos territórios sejam levadas em consideração na construção de soluções humanitárias e coletivas.
Ao colocar as favelas no centro do debate, o F20 e o G20 Favelas reafirmam o direito à cidade, além de criar pontes para um futuro em que a liderança, especialmente da juventude nos territórios marginalizados, tenha um papel fundamental. Essa participação ativa tem o potencial de transformar as favelas, possibilitando que suas vozes sejam respeitadas nas esferas de decisão, contribuindo assim para a construção de um país justo e sustentável.
Fonte: Observatório das Favelas