A utilização de conhecimentos tradicionais sobre a biodiversidade é o ponto de partida de pesquisas científicas e para o desenvolvimento de diversos produtos que abastecem as indústrias farmacêutica, cosmética, alimentícia e outras, na chamada cadeia produtiva da bioeconomia.
O acesso a esses recursos deveria promover a geração de renda e preservação desses saberes. No entanto, um levantamento do Instituto Escolhas revela que o uso indevido desses saberes, em desacordo com a legislação, faz com que o lucro de produtos que utilizam elementos da biodiversidade da Amazônia não chegue aos povos e comunidades tradicionais.
O estudo revela graves problemas no monitoramento do acesso ao conhecimento tradicional, apresentando falhas na identificação dos povos e comunidades detentores desses conhecimentos.
“Discutir e aprimorar o monitoramento do acesso ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético por pesquisadores e empresas é fundamental para fortalecer a bioeconomia e garantir direitos dos povos e comunidades tradicionais detentores desses conhecimentos”, afirma Jaqueline Ferreira, gerente de portfólio do Instituto Escolhas e coordenadora do estudo Monitoramento do uso dos conhecimentos tradicionais: como o Brasil pode avançar nessa agenda?.
A pesquisa, que investiga o acesso ao conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético (CTA) no Brasil e o mecanismo de repartição de benefícios gerados a partir do uso desse conhecimento, foi apresentada pela equipe do Escolhas ao Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGen), no Ministério de Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA), em Brasília.
Povos e comunidades tradicionais são amplamente ignorados
Em um levantamento de dados dos registros na plataforma eletrônica SisGen (Sistema Nacional de Gestão do Patrimônio Genético e do Conhecimento Tradicional Associado), entre novembro de 2017 e dezembro de 2022, o estudo identificou 150.538 cadastros de acesso a patrimônio genético e CTA. Desses, 87% indicam apenas acesso a patrimônio genético, não associado a conhecimentos tradicionais. Apenas 13% declaram acessar CTA, mas sem identificação do povo ou comunidade detentora em sua maioria.
Também foram identificados, no mesmo período, 19.354 cadastros de notificação de produtos acabados desenvolvidos a partir do acesso a patrimônio genético e/ou CTA. Mais uma vez, a maior parte (91%) das notificações são de produtos desenvolvidos apenas com patrimônio genético, sem CTA.
Apropriação indevida
Esses números evidenciam a apropriação indevida de conhecimentos tradicionais. Um exemplo citado pelo Escolhas é a rã amazônica kambô (Phyllomedusa bicolor), cuja secreção é usada como medicina por diversos povos indígenas amazônicos. A substância tem onze registros de patentes em países como Estados Unidos, Canadá, Japão, França e Rússia.
Ferreira ressalta que, no decorrer da pesquisa, o Escolhas promoveu diálogos com representantes de povos e comunidades tradicionais, estudiosos e membros do poder público para apresentar a premissa a ser estudada e os resultados intermediários.
“elaboramos uma proposta de banco de dados que pode ser usada para subsidiar o MMA na construção de uma ferramenta brasileira de rastreabilidade do acesso e monitoramento do uso de CTA” (Jaqueline Ferreira)
Um dos pontos de partida do estudo foi a utilização de banco de dados para monitorar o acesso a conhecimentos tradicionais e seu uso em pesquisas e no desenvolvimento de produtos.
“Analisamos o que diz a legislação e como essa ferramenta é usada em outros países, como Peru, Índia e Espanha. Ao fim, elaboramos uma proposta de banco de dados que pode ser usada para subsidiar o MMA na construção de uma ferramenta brasileira de rastreabilidade do acesso e monitoramento do uso de CTA”, explica Ferreira.
A proposta foi entregue, no dia 25 de agosto de 2023, à Câmara Setorial das Guardiães e Guardiões da Biodiversidade, instância do CGen.