A cidade portuária de Saint-Malo, no norte da França, cercada por muralhas e mares revoltos, recebeu nos dias 7, 8 e 9 de junho uma delegação brasileira que carrega luta e ancestralidade: intelectuais, artistas e escritores que transformam ferida em linguagem e memória em gesto político.
Pela primeira vez, o Brasil foi o país homenageado na 35ª edição do Festival Étonnants Voyageurs, um dos mais prestigiados encontros literários da Europa — e não foi qualquer Brasil que aportou ali.

“Ela representa essa delegação”

O festival ecoou vozes do Brasil ancestral e diverso. Em mesas como “Une Grande Mangrove Appelée Brésil” (Um grande manguezal chamado Brasil), a metáfora do mangue (bioma onde a vida brota da lama) ganhou contornos políticos e poéticos. “Há a vida que brota na efervescência do mangue, mas também, em contraposição, a imagem de Marielle, que nos remete imediatamente à morte”, disse Bernardo Carvalho. “Essa imagem traduz bem o Brasil — um país suicidário, como pudemos ver no filme Meu Sangue é Vermelho, de Graciela Guarani, onde uma minoria está sempre tentando sabotar os esforços de uma coletividade.”

Essa tensão entre criação e destruição, entre o que é arrancado e o que insiste em nascer, atravessou também a fala de Jeferson Tenório. Vencedor do Jabuti por O avesso da pele, ele participou da mesa “Vozes de Luta” ao lado do norte-americano Mateo Askaripour, e Olivier Marboeuf, de Guadalupe, somando algumas das principais vozes decoloniais a antirracistas contemporâneas.
O Brasil indígena em cena
Se o manguezal é metáfora do Brasil como terra fértil de contradições, o pensamento indígena escancarou essas fissuras com coragem e lirismo. Ao lado de Graciela Guarani, o escritor Daniel Munduruku trouxe ao festival sua obra e uma crítica contundente ao lugar que ainda é reservado aos povos originários nas narrativas globais.
“O mundo ocidental é um mundo muito quadrado e o mundo indígena é um mundo circular, é o mundo do coletivo”, afirmou o escritor, diante de uma plateia lotada. Questionado pela IRF sobre a influência da sua participação na percepção européia, Munduruku destacou que a presença indígena nesses festivais ainda parece “uma cota necessária”, marcada por exotismo e romantização. “Continuamos sendo retratados como ‘bons selvagens’”, ironizou.

Ele também chamou atenção para a desigualdade nos esforços de escuta: “Os indígenas fazem um esforço intelectual para entender o Brasil e encontrar e propor soluções para seus problemas mais graves. Mas o Brasil não se esforça para compreender os indígenas”, afirmou.

Entre mundos e afetos
Ao apresentar “Cartas para minha avó”, Djamila defendeu que “a política das emoções é também uma política da memória”. O processo foi difícil, permeado por momentos de choro, mas também por uma sensação de libertação. “Acabou se tornando a história de muitas mulheres”, disse a autora, que recebeu cartas de leitoras e até de crianças de escolas impactadas pela obra.
A ponte construída em Saint-Malo, foi mais que diplomática. Foi sensorial. Em cada fala, ecoou o desejo de reinventar a escuta, de interromper o exotismo com pensamento crítico, de apresentar um Brasil que“é muito mais do que samba e futebol e todos esses estereótipos”, como afirmou Jeferson Tenório, mas um país que se reinventa por meio da arte, da filosofia e da resistência.
Djamila reforçou esse diagnóstico. “Estamos em um país com estruturas fundadas no racismo, com quase quatro séculos de escravidão. Os desafios seguem imensos. Mas é preciso reconhecer os avanços.” Ela própria é fruto desse processo, como destacou ao afirmar que foi a primeira de sua família a ingressar na universidade, graças à ampliação do ensino superior público e à política de cotas raciais.
Esse percurso coletivo também foi lembrado por Jeferson Tenório, que compartilhou a experiência de seu novo romance, De Onde Eles Vêm, centrado na trajetória de Joaquim, um jovem negro que ingressa na universidade por meio do sistema de cotas.
Para o autor, esse movimento representa uma transformação silenciosa, mas profunda: “Essa entrada massiva de pessoas negras no ensino superior tem transformado a sociedade e a mentalidade coletiva”, afirmou, reconhecendo que, apesar da permanência do racismo, há mudanças em curso que abrem novos horizontes.
Já Djamila ressalta que o avanço não se dá apenas na presença em festivais internacionais, mas na construção de uma base sólida no Brasil. “Hoje há mais escritores negros publicando livros, compartilhando suas experiências, construindo pensamento”, disse, ao lembrar que esse movimento é resultado direto do acesso à educação superior e das lutas travadas por políticas públicas.
Em vez do Brasil folclórico das vitrines turísticas, Saint-Malo encontrou um Brasil que pensa, canta, escreve e resiste. Um país que reconhece suas raízes e se recusa a voltar para o silêncio. “É sinal de mudança, e é também um legado que queremos deixar para as próximas gerações”, finalizou Djamila.
*Com informações da Rádio França Internacional.