Faltando apenas duas semanas para o carnaval, a comunidade do samba corre para o apronto final, entre ensaios técnicos, coreografias e o trabalho criativo nos barracões e ateliês das escolas de samba da cidade do Rio de Janeiro.
Neste ano, o carnaval do Grupo Especial leva para a Marquês de Sapucaí a força das religiões de matriz africana e homenagens a ícones negros como Milton Nascimento, Laila e Xica Manicongo, a primeira travesti do Brasil.
Esta é a primeira vez que as apresentações ocorrerão em três dias, entre 2 e 4 de março. Abaixo, a primeira de uma série de reportagens sobre os enredos de cada escola. A primeira, traz os Enredos da Unidos de Padre Miguel e Unidos da Tijuca.
Unidos de Padre Miguel fala sobre o candomblé no Brasil
Após ser campeã no Grupo de Acesso em 2024, a escola da Zona Oeste volta ao Especial após 52 anos para contar a história da sacerdotisa africana Iyá Nassô, fundadora do Candomblé da Barroquinha, em Salvador (BA). “Iyá Nassô é a rainha do candomblé”, canta forte a escola da Vila Vintém.
“Contamos a saga de uma mulher africana, membro da corte do Império de Oyó, que veio para o Brasil na condição de escravizada e que manteve a religiosidade, não se afastou da mãe África. Depois de muita luta contra preconceitos e perseguições, ela inaugura o primeiro terreiro de candomblé do Brasil, a Casa Branca do Engenho Velho”, conta o carnavalesco Alexandre Louzada.
Com 40 anos de trajetória no Carnaval carioca, Louzada estreia neste ano na Unidos de Padre Miguel.
“Dizemos que ela plantou o primeiro axé aqui no Brasil, que ela fundou, na verdade, o modelo de candomblé ketu no país”, complementa o arquiteto Lucas Milato, que continua pelo seu segundo ano como carnavalesco da escola de samba. Responsável pelo culto a Xangô, um dos principais orixás das religiões afro-brasileiras, no palácio do Alafin de Oyó, Iyá Nassô teve a colaboração de outras duas ialorixás na construção da casa de candomblé na capital baiana: Iyá Adetá e Iyá Akalá, também celebradas no samba da Unidos de Padre Miguel.

Iyá Nassô
“A Iyá Nassô era de Oyó e a Iyá Adetá de Ketu. Elas trazem com elas todas essas influências africanas desses dois reinos extremamente importantes para a África, mas que entraram num processo de declínio por conta de invasões, então elas precisaram vir para o Brasil, já na condição de escravizadas, e aqui precisaram buscar formas de manifestar a sua religião, a sua fé”, explica Lucas em entrevista à Agência Brasil no barracão da Unidos de Padre Miguel, na Cidade do Samba.
Para Alexandre, o que aproxima o assunto da escola de samba nascida na Vila Vintém, no bairro de Padre Miguel, na zona oeste do Rio de Janeiro, e justifica a preferência da diretoria da agremiação pela história do surgimento do candomblé no território nacional é que, assim como o Terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, a Unidos de Padre Miguel se trata de um grande “egbé”, palavra em iorubá que significa “comunidade”. “O que escrevemos é que ‘egbé’ significa casa, uma grande comunidade, e a Unidos de Padre Miguel não é diferente. Ela vive e respira dentro de uma grande comunidade”, ressalta o carnavalesco.
Além disso, assim como o início da religião afro-brasileira no Brasil, a escola é liderada principalmente por mulheres. Como traz Lucas, muitos pilares da Unidos de Padre Miguel são femininos, enquanto a Casa Branca do Engenho Velho é um terreiro de candomblé conduzido, criado e fundado por mulheres. “Até hoje ela se sustenta por essa força feminina, então esse enredo conquistou o coração da nossa diretoria por isso, porque é um enredo que valoriza muito a figura feminina, não só nas religiões de matriz africana, mas também na comunidade como um todo”.
“É uma história que a nossa história oficial não conta”, reflete Alexandre, ao lado de Lucas. “Trazemos à tona personagens esquecidos pela história, porque na época colonial houve esse apagamento cultural, não só dos que vieram da África para o Brasil, como da própria África, então hoje existe um movimento muito forte de resgate dessa cultura africana, porque somos um país de maioria com descendência africana”, acrescenta. Segundo o Censo Demográfico de 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 55,51% da população nacional se identifica como negra, sendo 45,34% como parda e 10,17% como preta.
Da Vila Vintém à Sapucaí
“A Unidos de Padre Miguel é uma escola muito esperada pelo grande público, porque ela teve o seu reinado, vamos dizer assim, na Série Ouro por vários anos. É diferente de muitas escolas que ascendem ao grupo especial, porque ela já tem uma torcida própria”, comenta Alexandre. “Ela sempre foi tão esperada a ser vencedora e várias vezes bateu na trave. Agora, isso se torna realidade, então ela é uma escola que chega ao grupo especial gozando de uma simpatia maior do que em outros casos que já aconteceram de escolas que ascenderam ao grupo especial”.
No carnaval de 2023, a escola encerrou em segundo lugar na Série Ouro. O mesmo resultado se repetiu nos desfiles de 2020, 2018, 2016 e 2015. Apesar de a Unidos de Padre Miguel já ter desfilado antes na primeira divisão do carnaval do Rio de Janeiro, considerando o formato atual da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa), essa é a primeira vez que a agremiação disputa no Grupo Especial.
A expectativa agora é “ser campeã, botar todas elas para trás”, diz Alexandre. “Esse tem que ser o pensamento certo de um carnavalesco. Sabemos da dificuldade, sabemos que estrear no Grupo Especial é uma coisa muito difícil, porque vamos enfrentar grandes feras do carnaval, mas a gente vai com fé, porque nos foi dado condições de fazer um carnaval para disputar de igual para igual”.
“Geralmente, cria-se um paradigma de que a escola que subiu tem que brigar para não descer. Na verdade, não queremos ter esse pensamento. Queremos brigar para ser campeões, para conquistar um lugar no G6, o grupo das seis escolas que retornam para o Desfile das Campeãs”, continua Lucas. “Esse desfile criamos com uma expectativa muito grande, porque obviamente marca esse grande retorno da escola ao grupo especial, mas, acima de tudo, acho que é um grande presente que estamos dando para a comunidade da Vila Vintém, que esteve conosco todos esses anos”.
Unidos da Tijuca homenageia orixá filho de Oxum e Oxóssi
Logun-Edé é um príncipe dos orixás fruto do amor entre Oxum e Oxóssi. A história deste jovem guerreiro muito respeitado pelos mais velhos é a aposta da escola Morro do Borel em busca de seu quinto título no Grupo Especial.
A preparação para o carnaval de 2025 começou cedo na Unidos da Tijuca. Desde março do ano passado, carnavalescos e componentes da escola trabalham no enredo Logun-Edé – Santo Menino que o Velho Respeita. O tema, desenvolvido pelo carnavalesco Edson Pereira, conta a história da divindade cultuada pelas religiões de matriz africana conhecida como “príncipe dos orixás”. Segundo a tradição iorubá, Logun-Edé é filho de Oxum, orixá associada à pesca e à água doce, e Oxóssi, relacionado à caça e às florestas.
“Quando cheguei na escola, existia um desejo muito grande de fazer um enredo sobre Logun-Edé. Tinha outros enredos também, mas achei que esse seria um momento muito especial para trabalhar essa história e trazer uma energia positiva, que a comunidade abraçasse”, diz Edson. Figurinista de formação, ele começou a trabalhar no carnaval em 1992 como pintor de arte, passando por outras funções ao longo dos anos. Antes de estrear como carnavalesco da escola amarelo-ouro e azul pavão, ocupou esse cargo por 16 anos na Unidos de Padre Miguel.
Logun-Edé
“Fiz uma pesquisa extensa para saber como conjugar esse orixá à história da escola e descobrimos muitas coisas que parecem coincidências, mas que são fatos”, comenta o carnavalesco sobre as relações entre a escola e o enredo escolhido para o carnaval deste ano. Fundada em 1931 no bairro da zona norte do Rio que traz em seu nome, a Unidos da Tijuca nasceu na Rua São Miguel, que no sincretismo religioso corresponde a Logun-Edé. Além disso, a escola tem as mesmas cores do orixá em seu pavilhão, o amarelo e o azul, e compartilha do mesmo animal que a divindade: o pavão.

“A partir disso, começamos a entender como é tratado esse orixá que se julga um menino, mas que o velho respeita pela sabedoria e pela bravura dele, e vemos a relação no mundo contemporâneo de Logun-Edé com a escola e com o que estamos vivendo atualmente”, continua. Em uma das salas do barracão da Unidos da Tijuca na Cidade do Samba, Edson também destaca a importância de se discutir a ancestralidade e a negritude nos desfiles de carnaval, temas que a escola não trabalhava há mais de 20 anos, de acordo com o carnavalesco.
Apesar de ser um orixá menos difundido em comparação aos outros, Logun-Edé “traz uma sabedoria muito grande e muitos conhecimentos para a nossa cultura”, afirma Edson. “Acho muito importante hoje falarmos sobre esse orixá. Não somente sobre o orixá, mas também sobre a sua ancestralidade, sobre a nossa ancestralidade, de uma maneira que possamos ensinar às pessoas.”
Preparação
“O processo foi muito calmo este ano porque começamos muito cedo”, conta Junior Bandeira, na Unidos da Tijuca há 12 anos. Na agremiação, Junior, que veio da escola de samba Imperatriz de Olaria, de Nova Friburgo, na região serrana, é responsável pela confecção de fantasias, trabalhando com uma equipe de cerca de dez pessoas. No mesmo andar, a esposa dele, Denize Peres, lidera outra equipe com aproximadamente a mesma quantidade de pessoas envolvidas na produção das roupas.

São mais ou menos 380 fantasias confeccionadas por cada ateliê, que levam de 30 a 40 dias para ficarem prontas, segundo Junior. “Quando tem o material, conseguimos fazer em torno de 30 a 40 dias, mas tem todo o processo de chegada do material, isso demora um pouco, ficam algumas pendências para o final, mas é mais ou menos esse tempo que leva”, explica.
Todas as fantasias são produzidas no barracão, com acompanhamento da direção e do carnavalesco da agremiação. Após o desfile, as fantasias são desmanchadas, e o material é vendido para escolas de outras cidades, para ser usado no próximo ano. Ao todo, a Unidos da Tijuca reúne atualmente em torno de 150 pessoas envolvidas na construção do desfile deste ano.
A esperança de Junior é que a escola seja campeã do carnaval, retornando para o bairro da Tijuca com o quarto título como vencedora do Grupo Especial do Rio de Janeiro. O último foi conquistado em 2014, com o enredo Acelera, Tijuca!, que homenageou o piloto de Fórmula 1 Ayrton Senna, morto em um acidente de carro durante o Grande Prêmio de San Marino, na Itália, 20 anos antes, em 1º de maio de 1994. A agremiação também foi vencedora nos anos de 2010 e 2012, com os enredos É Segredo! e O Dia em que Toda a Realeza Desembarcou na Avenida para Coroar o Rei Luiz do Sertão.
Em março, a Unidos da Tijuca será a primeira escola a desfilar no dia 3 de março no Sambódromo da Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro. À Agência Brasil, Edson garante que as expectativas para este ano são “as melhores possíveis”. “Precisamos fazer desse enredo, desse desfile, o melhor desfile das nossas vidas aqui na Unidos da Tijuca, para podermos cumprir com as expectativas não só da comunidade, mas também do mundo do samba”, afirma.