O turista que visitar o complexo de oito cachoeiras do Rio da Prata, na região do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, vai conhecer o “jeito de ser Kalunga”, como se refere Carlos Pereira, presidente da Associação Quilombo Kalunga (AQK), ao turismo de base comunitária que a comunidade vai implementar após a retomada da posse do território, em decisão já transitada na Justiça.
A luta pela “desintrusão” – processo de retirada de invasores do território Kalunga, situado nos municípios goianos de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás, é, na visão de Carlos, “o processo de recuperação das terras Kalungas, que estavam sendo invadidas por fazendeiros e grileiros que exploravam as belezas naturais da região.
Para Carlos, o maior desafio continua sendo não apenas a recuperação das terras, mas também a preservação da cultura e das tradições que sempre guiaram o povo Kalunga. A busca por justiça territorial, em muitos momentos, se mistura com o resgate da autonomia cultural e ambiental do povo Kalunga.
“Quando os invasores começaram a chegar, muitas vezes não entendiam a nossa relação com a natureza. A gente, por exemplo, vê a cachoeira como um lugar sagrado, e não como uma máquina de fazer dinheiro. Mas, para muitos, isso virou uma oportunidade de lucro rápido e exploração irresponsável. Isso foi gerando opressão, e aí a gente teve que resistir”, relata Carlos.
Para ele, o turismo deve ser uma via de mão dupla: um meio de compartilhar as belezas e tradições do território Kalunga, mas também de fortalecer a identidade e a autonomia local. Ele lamenta que muitos turistas que visitam a região ainda estejam restritos a atividades superficiais, como a visita a cachoeiras e apresentações folclóricas, enquanto aspectos mais profundos da cultura Kalunga, como a gastronomia e o saber ancestral, permanecem à margem.
“A gente está num processo de organizar o turismo dentro do território, mas não da forma como é feito em outros lugares. O turismo de base comunitária tem que ser mais que uma máquina de fazer dinheiro. A gente quer que o visitante conheça o ‘jeito Kalunga de ser’, com a nossa culinária, nossas histórias, a nossa cultura, mas sem que isso vire uma exploração. O turismo tem que respeitar nosso modo de vida”, afirma o presidente da AQK.
Carlos Pereira participou do Painel Ciência Cidadã do 2º Seminário Técnico-Científico da Rede Brasileira de Trilhas, realizado em São Paulo (SP) na segunda quinzena de novembro. Além de abordar a reorganização do território do Complexo da Prata para o turismo de base comunitária, Carlos falou também da proteção ao patrimônio vivo material e imaterial. “Não se faz mais pesquisa dentro do território sem autorização”, enfatizou Carlos. Dentro da Associação Quilombo Kalunga (AQK), há a Comissão de Pesquisa e Projetos que é responsável por avaliar e conceder autorização para quaisquer pesquisas que institutos e universidades queriam realizar com os kalungas ou dentro de seu território.
Luta pela recuperação das terras
Por mais de 40 anos, a luta pela recuperação do território quilombola Kalunga tem sido marcada por desafios jurídicos, ocupações ilegais e a ameaça constante de grileiros. Situado na região da Chapada dos Veadeiros, o Quilombo Kalunga, com 262 mil hectares, é um dos maiores e mais emblemáticos do Brasil, agora vive um momento de resiliência e esperança. O território Kalunga, em 2021, recebeu da Organização das Nações Unidas (ONU) o título de primeiro Território e Área Conservada por Comunidades Indígenas e Locais (Ticca) do Brasil.
O ativista e estudante de mestrado em Sustentabilidade junto a Povos e Territórios Tradicionais (UnB) e presidente da Associação Quilombo Kalunga (AQK), Carlos Pereira, detalha o que muitos chamam de um processo heroico de resistência. “Essa luta pela desintrusão é bem recorrente e longa, vem de muito tempo. A gente permeia essa luta há mais de 40 anos, tentando que o território seja um dia livre”, diz.
O território, originalmente do povo Kalunga, nas últimas quatro décadas, passou a sofrer com invasões. “Começaram a aparecer essas pessoas que dizem ser donos daquilo, nem sabemos como conseguiram esses documentos. Muitos são documentos falsificados, grilados”, explica. Os grileiros e invasores têm um interesse significativo na área, motivados principalmente por questões econômicas e pela exploração de recursos naturais. A região, que abriga uma rica biodiversidade do Cerrado, é alvo de atividades ilegais que incluem desmatamento, extração de madeira, garimpo ilegal e a instalação de pousadas irregulares.
A resistência histórica do Quilombo Kalunga se intensificou nas últimas décadas, com o avanço do processo de ocupação ilegal e da exploração de suas riquezas naturais, como as águas e as cachoeiras da região, para fins turísticos. Apesar dos obstáculos, Carlos e a comunidade Kalunga não desistiram. Em 2024, o processo de regularização das terras Kalunga alcançou um importante avanço, com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) retomando a regularização fundiária de áreas, como a antiga Fazenda Nova Aurora, que agora irá beneficiar entre 30 e 40 famílias.
Essa conquista representa um marco significativo na luta pela recuperação das terras, embora ainda haja muitas áreas a serem regularizadas. A expectativa é de que entre 350 e 450 famílias do Quilombo Kalunga aguardem o reconhecimento de seus direitos territoriais nos próximos anos, o que será um passo importante para garantir a posse definitiva dessas terras.
“Hoje, já conseguimos recuperar algumas fazendas. São grandes áreas, com uma média de 450 famílias esperando para voltar para o território. E essas terras, quando são recuperadas, passam a ser tituladas de forma coletiva. É uma nova forma de organizar e cuidar do território”, explica.
Esse processo de recuperação territorial envolve não só a retirada de invasores, mas também a reestruturação de toda a gestão da terra, com foco na preservação ambiental e na autonomia dos Kalungas. O uso de tecnologias também tem sido uma ferramenta essencial para mapear as áreas e garantir que cada família ocupante do território tenha um ponto demarcado para viver, com responsabilidade sobre a terra e os recursos naturais.
Economia e turismo
A economia local está ligada à preservação do Cerrado. Os Kalungas utilizam práticas agrícolas tradicionais que respeitam o meio ambiente, cultivando pequenas roças sem o uso de agrotóxicos, o que garante a subsistência da comunidade, além de contribuir para a conservação da biodiversidade local. A coleta de frutas nativas e outros produtos do Cerrado é fundamental para a renda da população, reforçando a conexão entre cultura, economia e meio ambiente.
Outro aspecto essencial do projeto de autonomia do Quilombo Kalunga é a promoção do turismo de base comunitária, que busca respeitar a cultura local e ao mesmo tempo gerar renda para as famílias. Carlos defende que esse tipo de turismo deve ser sustentado por um olhar genuíno para a cultura Kalunga, sem cair na exploração desenfreada que muitas vezes acompanha os grandes projetos turísticos.
As questões econômicas e o turismo de base comunitária envolvem a juventude Kalunga, pois os desafios para o futuro do Quilombo Kalunga vão além da questão territorial. A integração entre as gerações, a preservação da cultura e o fortalecimento da liderança jovem são algumas das principais preocupações de Carlos e de outras lideranças locais. O jovem presidente da Associação acredita que o fortalecimento da identidade local, com uma troca entre os mais velhos e os mais jovens, é essencial para garantir a continuidade da luta.
“Uma das maiores oportunidades para o Quilombo Kalunga é criar espaços para que os jovens aprendam com os mais velhos. A juventude precisa entender sua história e sua cultura para poder lutar por seu futuro. Sem essa consciência, sem esse conhecimento, a luta se perde, e a cultura corre o risco de desaparecer”, afirma Carlos.
O presidente da AQK concedeu entrevista à Agência Universitária de Notícias durante os eventos do 3º Congresso Brasileiro de Trilhas, realizado no Parque Ibirapuera, São Paulo (SP), entre 14 e 17 de novembro de 2024. As fotos são de autoria de Ana Luiza Moraes e Mônica Prado.
Por Ana Luiza Moraes
Supervisão de Mônica Prado | Agência CEUB https://creativecommons.org/licenses/by-nd/4.0/