Na Cidade Operária e na Cidade Olímpica, periferia de São Luís, Maranhão, em somente um fim de semana, já chegaram a morrer oito adolescentes assassinados pela violência urbana contra jovens pretos da periferia, segundo relatos das lideranças locais. Em 2025, a mudança dessa realidade se consolida com ações intencionais realizadas por lideranças da comunidade, jovens, políticas públicas e empresas parceiras para projetar a potência criativa e engajada do território na luta contra a violência racial e a exclusão dos seus jovens, com a realização do Festival Criativo Antirracista.
Em abril, a comunidade realizou o 3ª Festival Cidade Operária Criativa e Antirracista, no Centro Educa Mais Maria José Aragão, escola da rede estadual, como parte do Projeto Janelas de Oportunidades, realizado pela Fundação Justiça e Paz Se Abraçarão (FJPA), Coletivo Menina Cidadã, Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), e parceria de RD Saúde e Needs, Governo do Estado do Maranhão, Defensoria Pública do Estado, Faculdade Laboro, empresariado local e organizações da sociedade civil.
Em dois dias de oficinas práticas, rodas de conversa, feira de afroempreendedores e apresentações artísticas, mais de 1.700 jovens e moradores da Cidade Operária mostraram sua potência, criatividade e resiliência. Nesta edição, um time de voluntariado de 73 jovens também liderou a execução da animação da programação, o cerimonial, o credenciamento, a infraestrutura e a organização logística do evento. Mais de 50% foram voluntários pela primeira vez no Festival, confirmando dessa forma que o desenvolvimento de capacidades para emprego jovem também acontece através de eventos de arte, cultura e participação social.
Um Selo Antirracista para lideranças sociais e empresas
Quando foi idealizado, o Festival Cidade Operária Criativa e Antirracista criou um Selo Criativo Antirracista que as próprias lideranças sociais do bairro entregam a pessoas, organizações e empresas locais que se destacam com ações efetivas para combater o racismo e a violência, promovendo inclusão de adolescentes e jovens da periferia. Em edições passadas, já receberam o Selo: Wilson Chagas, pelo seu trabalho de 24 anos como coordenador do Grupo de Artes do Maria Aragão (GAMAR), além de organizar a AfroArte, evento que busca celebrar por meio de apresentações artísticas e acadêmicas a cultura negra; a hamburgueria artesanal Blacks Burguer, pelo desenvolvimento do primeiro hamburguer antirracista, feito com alimentos que remetem a feijoada, e por escolher jovens pretos para trabalhar no local; Thaynara OG, pela parceria com o Coletivo Menina Cidadã na difusão do tema de dignidade menstrual; Isoneth Lopes, por promover a formação Antirracista e Criativa para artistas da comunidades; Irmãs da Sagrada Família, casa de afeto e acolhida das meninas pretas do território; Faculdade Laboro, espaço educacional Antirracista e incentivadora de bolsas de estudo para jovens do território; e Paula Maia, designer criadora da marca do Festival e ativista na defesa das meninas.
Nesta 3ª edição, foi criado formalmente o Comitê do Selo, que tem como principal objetivo avaliar e selecionar as iniciativas candidatas ao Selo Antirracista, garantindo transparência, equidade e alinhamento com os critérios estabelecidos no regulamento. O Comitê tem um processo de construção contínua e participativa. Atualmente, ele é composto por sete membros, entre representantes da FJPA com experiência em projetos sociais, igualdade racial e gênero, especialistas reconhecidos na área de direitos humanos, igualdade racial e/ou gênero membros, lideranças comunitárias representante de Organizações da Sociedade Civil antirracistas, jovens lideranças com experiência em ativismo antirracista. A entrega do Selo da atual edição deve ocorrer em setembro de 2025.
Oficinas, rodas e juventude em movimento
As atividades de formação durante o Festival já mostraram a potência criativa da juventude do território. No primeiro dia, 761 pessoas participaram de oficinas e rodas de conversar sobre Trama de Saberes, Vivência Antirracista Indígena, Racismo Religioso, Capoeira, Teatro, DJ Antirracista, Criação de Conteúdo para redes sociais e Reggae. Um dos destaques mais criativos foi a oficina de Hambúrgueres Antirracistas, mediada por Jessica Izlene, da empresa Blacks Burguer, que ganhou o Selo Antirracista pela criação de uma receita única de um sanduíche exclusivo da Cidade Operária a base de pão preto australiano, pernil, vegetais e um molho exclusivo do chefe Paulo Fernando de Oliveira. Na oficina, os jovens aprenderam a produzir seu próprio hambúrguer enquanto refletiam sobre empreendedorismo negro.

Mais 946 pessoas se somaram ao movimento no segundo dia, iniciando com os jovens da comunidade na Caminhada Antirracista, por 500m até o Centro EducaMais Maria José Aragão, onde o painel de grafismo exclusivo de cada edição do Festival foi pintado nesse ano por Railde Paula Diniz e Emyla Mayara Lopes, com uma forte mensagem visual da luta territorial contra violência racial. Logo em seguida, os jovens tiveram mais oficinas, como de design digital por exemplo que atraiu jovens interessados em tecnologia e comunicação visual, batalhas de rimas/hiphop, feira criativa das mães e mulheres da comunidade, e desfiles de moda afro das produtoras fashion locais. O Festival se encerrou com shows de percussão e muita música de Boi, Funk, Reggae e Samba, com artistas como Pedro Sobrinho, Gisele Padilha, Adda, Célia Sampaio e o Boi de Santa Fé.

Escola Política Criativa e Antirracista João Batista Lira Neto das periferias
O 3º Festival também celebrou a aliança e identidade comum entre dois espaços da periferia brasileira que lutam contra o racismo: a Cidade Operária em São Luís e a Favela da Maré no Rio de Janeiro. Criada por professores e profissionais oriundos da Favela Maré, a Uniperiferias é a primeira universidade criada e implementada por moradores de periferias do Brasil para fortalecer a luta por direitos em periferias urbanas, por meio de pesquisa, comunicação e formação de sujeitos das favelas e comunidades urbanas. Há dois anos se estabeleceu a parceria entre a Uniperiferias e , as lideranças sociais e os jovens da Cidade Operária e Cidade Olímpica, trazendo capacitações e oficinas sobre a história do Brasil periférico, lutas antirracistas, ciência, saberes e economia das periferias.
O resultado foi a criação da primeira escola de formação de lideranças jovens da periferia de São Luís, a Escola Política Criativa e Antirracista João Batista Lira Neto: ao capacitar jovens com habilidades em liderança, organização comunitária e ação política, o curso buscou fortalecer a comunidade, promovendo justiça social, inclusão e desenvolvimento sustentável. A primeira turma de 20 alunos se formou no dia 7 de dezembro de 2024, e uma nova turma será lançada em maio de 2025.
Durante o Festival, a equipe de professores Arthur Pedro, coordenador de formação, e Cleber Ribeiro, diretor, da Uniperiferia, realizou roda de conversa sobre “A Cidade Operária que queremos” com 39 jovens e líderes sociais, resultando em uma carta-manifesto escrita por moradores com as principais demandas para o desenvolvimento inclusivo da região.
Lançamento PerifaCria
Durante o evento também foi lançado o PerifaCria, uma incubadora social de negócios criativos voltada para jovens afroempreendedores. O programa tem como foco o Mercado Criativo da Gastronomia e visa fortalecer jovens entre 18 e 19 anos, residentes da Cidade Operária, capacitando-os e apoiando o surgimento do primeiro negócio coletivo no território criativo e antirracista da região.
Como parte da iniciativa PerifaCria, nove jovens da Cidade Operária participaram, no dia 15 de março, de um workshop sobre empreendedorismo para a criação de novos negócios. Durante a atividade, os participantes realizaram uma autoavaliação para identificar áreas de interesse para aprendizagem e reconhecer as habilidades técnicas e práticas que já possuem, especialmente no contexto de gerenciamento de negócios.
O workshop foi a primeira etapa de uma trilha formativa que visa transformar ideias em iniciativas reais de geração de renda. O próximo passo acontece durante o mês de abril, quando 10 jovens serão selecionados para desenvolver um modelo de negócio real, com foco inicial na produção alimentícias, tendo uma massa como primeiro experimento. Os jovens selecionados receberão bolsas de incentivo e crédito semente para iniciar as operações.
A iniciativa busca promover alternativas de renda para jovens periféricos e integrar a economia criativa ao desenvolvimento comunitário. O PerifaCria está alinhado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, com ênfase na Igualdade de Gênero (ODS 5), Trabalho Decente e Crescimento Econômico (ODS 8), e Redução das Desigualdades (ODS 10).
Histórico de mobilização
A edição de 2025 reforça o crescimento e a força do Festival para todo o bairro. Em 2023, mais de 5.000 pessoas participaram no espaço da praça Viva Cidade Operária, em atividades como a Feira Criativa Viva C.O, Caminhada da Rota Antirracista, Oficina Tardezinha Empresarial, Workshop Pretas Tech e Oficina Aprender Fazendo de trancismo. Na edição atual de 2025, autoridades públicas, como o Vice-Governador do Maranhão, Felipe Camarão, o Secretário Municipal da Agência de Desenvolvimento Econômico e Social de São Luís, Felipe Mussalém, e o Diretor-Geral do Museu do Reggae, Ademar Danilo, se fizeram presentes.
O impacto do Festival
Airton Monteles, jovem do Coletivo Menina Cidadã e membro do Conselho Jovem Nacional do UNICEF no Brasil, compartilhou a importância do festival para sua formação e para o fortalecimento da identidade dos jovens da periferia. Ele destacou que, apesar dos desafios, a Cidade Operária é um território rico culturalmente e que, por meio de ações afirmativas, a juventude local pode transformar a realidade ao seu redor. “Discutir racismo é muito importante dentro do ambiente, tanto do festival quanto antes dele. O festival acontece justamente pela formação que as juventudes e nós mesmos temos dentro dos coletivos, mas também pelas nossas vivências. É muito pelas minhas vivências, dos meus amigos, dos meus parceiros, que a gente entende que a gente precisa lutar contra o antirracismo. Porque não é só porque eu vejo, é porque eu sinto todos os dias o racismo, lutando comigo, com a minha família, com os meus amigos e com todas as pessoas dentro do território”, ressaltou.

Finalista na Batalha de Rimas, o jovem Hades, de 21 anos, participou pela primeira vez do Festival Cidade Operária Criativa e Antirracista e falou sobre a importância do evento para a juventude negra. “O festival é um espaço fundamental, onde os jovens podem se expressar e serem ouvidos. A batalha de rima, por exemplo, é feita majoritariamente por jovens negros, e a participação da galera foi incrível. Isso é muito importante, pois mostra que nossa voz tem espaço”, afirmou.
Hades compartilhou ainda uma experiência pessoal: “Eu já passei por episódios de racismo, como quando fui chamado de ‘marginalzinho’ na escola. Mas hoje, posso voltar a esse lugar para palestrar e inspirar outros jovens que enfrentam o mesmo. Eventos como o festival são essenciais para refletir e nos fortalecer”, contou.

A chefe do escritório do UNICEF no Maranhão e Piauí, Ofélia Silva, ressaltou a importância da mobilização dos jovens para criar uma comunidade mais protetora dos direitos das crianças e adolescentes. “Através deste festival, vemos um grupo enorme de adolescentes e jovens discutindo ações antirracistas e entendendo os direitos que os protegem. A Cidade Operária prova que é possível, sim, construir uma comunidade que protege suas crianças e adolescentes contra a violência”, destacou.

O vice-governador do Maranhão, Felipe Camarão, expressou seu apoio ao projeto: “transformar a Cidade Operária oficialmente, dentro da região toda, numa Cidade Operária antirracista, numa Cidade Operária criativa, empreendedora, é fazer transformação social de verdade. Quero que essa garotada, nossos estudantes, tenham um grande futuro e façam parte de uma sociedade que respeite todas as pessoas, independente da religião, da cor da pele, do time de futebol que torce, da orientação sexual ou de qualquer outra diferença que é normal na vida de todo mundo. Viva uma sociedade criativa e antirracista!”.
“O Festival Cidade Operária Criativo e Antirracista foi uma verdadeira celebração da nossa identidade, ancestralidade e potência coletiva. Mais de mil jovens e familiares foram impactados por experiências formativas, culturais e educativas que fortaleceram o sentimento de pertencimento, valorizando as raízes e histórias do nosso território. Essa ação, parte do projeto Janelas de Oportunidades, mostrou como a arte, a cultura e o protagonismo juvenil são ferramentas reais de transformação social e construção de um território mais justo, criativo e antirracista”, pontuou a superintendente da FJPA, Elivânia Estrela.
Cenário de direitos de adolescentes no Maranhão
O Festival Criativo Antirracista é uma contribuição importante para mobilizar atores locais pela transformação do contexto estadual de violência e exclusão. No Maranhão, se concentram alguns dos grupos populacionais mais vulneráveis do País e o racismo estrutural alimenta historicamente essa disparidade.
São mais de 1,7 milhão de jovens entre 15 e 29 anos (IBGE 2022). A proporção de pessoas de 14+ anos engajadas em trabalho formal é a menor do país: 35,7% [IBGE 2022]. O desafio de acessar oportunidades de trabalho decente, São Luís, capital do Maranhão, indica o nível de gravidade dessa privação: 30% dos 18 a 24 anos e 26% dos 25 a 29 anos não estudam nem trabalham.[1] Apenas 47% do potencial para cumprir a cota de aprendizagem exigida por lei é entregue pelos setores público e privado na cidade de São Luís – um total de 2.830 jovens engajados no trabalho.[2] E entre 2010 e 2020, 3.138 crianças, adolescentes e jovens entre 10 e 19 anos foram assassinados (SIM-TabNET DataSUS).
No Índice de Desenvolvimento da Educação Básica Brasileira (IDEB 2023), o estado do Maranhão é colocado na posição 20º entre 27 estados, nos anos finais de escolaridade. Em relação a esse ciclo de vida, adolescentes do estado do Maranhão, de 15 a 19 anos, também tiveram um dos maiores índices de gravidez do Brasil, entre 2010 e 2023[3].
O Maranhão tem o segundo maior percentual de alunas do 9º ano totalmente desassistidas no que tange ao acesso a itens básicos de higiene pessoal nas escolas, o que inclui o tema da dignidade menstrual e o acesso e uso de absorventes (UNICEF/FNUAP, Pobreza Menstrual no Brasil, 2021).
Janelas de Oportunidades
O projeto Janelas de Oportunidades, iniciado em 2022, tem contribuído para a mobilização de jovens em diversas regiões do Maranhão. Ao longo de 2024, ampliou seu alcance, envolvendo os municípios de Bequimão, Alcântara, Rosário, Santo Amaro e Tutóia. O projeto busca fortalecer os direitos dos jovens e lutar contra as violências de gênero e raciais, promovendo também o movimento nacional #PraQuemMenstrua, voltado para a dignidade menstrual e a saúde integral do adolescente, com apoio de parceiros importantes como a RD Saúde e Needs.